segunda-feira, julho 30, 2007

Vidas a prazo


Quase um milhão de pessoas no nosso país trabalha a recibos verdes.
Retrato de um universo onde só há «flexi» e nenhuma «segurança».

«Um homem, de meia idade, com ar distinto, fato e gravata, professor universitário, respeitado por todos. Dava aulas numa faculdade privada há doze anos, quando um dia foi «dispensado». Havia, no entanto, um 'se'.
Apesar de cumprir as funções de docente de forma continuada, o professor tinha um contrato de prestação de serviços, não era trabalhador por conta de outrem. Estava a recibos verdes, e isso significou não ter direito a subsídio de desemprego, doença ou reforma».
O caso foi, recentemente, relatado num semanário.
Fez-se apelo à justiça – e de facto deu razão ao professor universitário.
Mas 10 anos depois.
Nesses 10 anos, o professor tinha-se transformado noutra pessoa, profundamente triste, profundamente desamparada. Sem fonte de rendimento nem rede social de qualquer espécie, este homem só não morreu de fome porque o Banco Alimentar lhe garantia as refeições. O professor universitário, com mestrado, passou da capital do país para um casebre emprestado, sem electricidade, num descampado nos arredores de Coimbra.
Isto aconteceu em 1991.
Poderia crer-se que, 16 anos mais tarde, o estado de coisas teria melhorado em Portugal, que conheceu um «crescimento económico» fictício baseado num sem número de fundos estruturais da UE, aplicados em proveito de uns poucos.
Mas, infelizmente, a situação dos recibos verdes aumentou incomensuravelmente.
Trabalhadores de câmaras municipais avençados há dez anos, despedidos com as transições de mandato político, biólogos e engenheiros ambientais do Instituto de Conservação da Natureza, telefonistas de 50 anos dispensadas de um dia para o outro depois de 10 anos de casa, sem direito a nada, grávidas despedidas, arquitectos, professores, designers, jornalistas, tradutores, contabilistas, a área da cultura e do espectáculo em bloco – é todo um mundo em Portugal que está a recibos verdes.
Mais difícil é conseguir que estas pessoas falem, se revoltem e denunciem todo o tipo de abusos. Testemunhar é assinar uma sentença de despedimento, precisam daquele emprego para sobreviver.
As histórias que se conhecem são, portanto, uma ponta do icebergue da triste e vergonhosa contratualização em Portugal.
Mas são representativas de milhares de pessoas impedidas de se autonomizarem dos pais, de constituir família, de comprar casa, de ter auxílio na doença, de poder respirar fundo ao fim de um dia de trabalho por saberem que os descontos obrigatórios que todos os meses lhes saem do bolso lhes servirão para alguma coisa, mesmo não falando numa longínqua reforma.
A esta camada assustadoramente crescente da população, encostada à parede, quase forçada a emigrar, que não ajudará na renovação das gerações, o que diz o Estado?
Nada. Ou pior ainda, alimenta e faz «lei» mantendo ao serviço milhares e milhares de trabalhadores que, aguardam ansiosamente pela prorrogação de mais um contrato de trabalho.
É preciso fazer uma nova revolução?
Aquele professor com o olhar «aterradoramente triste» de ar respeitável, a quem o país desamparou por completo, não podemos ignorar.
Como ele milhares e milhares cidadãos a quem uma classe política pedante, mil vezes mentirosa, ultraja, insulta, ignora, vilipendia e suga até ao tutano.
«Hoje, aquele homem é uma sombra do que foi. Parece vinte anos mais velho, sofreu dois ataques cardíacos. Nada pode compensar aquilo por que passou». O semanário tentou, ao longo de mês e meio, fotografar Joaquim, mas os problemas cardíacos que o mantiveram nos Cuidados Intensivos do Hospital de Coimbra impossibilitaram-nos de o fazer.
Quase um milhão a recibos!!!!
Foi no início dos anos 90 que os primeiros casos de «falsos recibos verdes» surgiram.
Trabalhadores que cumprem as mesmas funções dum empregado, com horário, hierarquia, posto de trabalho, ordens de superiores.
Hoje, continua a não haver dados exactos, pois «como é uma prática ilegal, não há números fidedignos».
E assiste-se a novas tentativas de dissimulação do fenómeno, como a constituição de empresas subcontratadas para prestar serviços. O jornal 'Público' de 30 de Maio assegurava que havia 883,6 mil trabalhadores a recibo verde.
O INE não tem um método directo de apuramento de trabalhadores a recibos, mas adianta dados que permitem fazer contas: no 1.º trimestre de 2007, 646,7 mil pessoas tinham contrato de trabalho a termo, 188,7 mil contratos de prestação de serviços, e 66,1 mil pessoas estavam em sub emprego visível. O que dá um total de 901 mil trabalhadores a recibo verde.
No século XXI, em Portugal, «continua a praticar-se 'dumping social'.
«Os trabalhadores a recibo verde são mão-de-obra dócil e barata. Não têm quaisquer custos para o empregador e não têm qualquer direito. Além disso, têm uma dupla tragédia em cima: se são despedidos ficam sem o seu salário e sem direitos sociais.» As empresas ainda obedecem à lógica de que «só podem existir empresas estáveis com pessoas instáveis».
Quanto à Inspecção-Geral de Trabalho, que tem por papel fiscalizar casos de fraude, a sua actuação é manifestamente insuficiente: «A OIT (Organização Internacional de Trabalho) recomendou que Portugal tivesse 750 inspectores no quadro. Neste momento, temos 252 inspectores para todo o país. Há uma total incapacidade de resposta. E também uma clara vontade de não 'apertar' com as empresas que têm estas práticas fraudulentas».
«A prosseguirmos por este caminho, o desastre é total. A lógica de que trabalhadores desmotivados e receosos são melhores é um disparate pegado.»
Que futuro?
A emigração ou o aumento vertiginoso dos pedidos de reinserção social ou a ajuda do Banco Alimentar?
Será solução?
Estou farto. Farto de um país onde os vampiros e os eunucos pedem mais e mais sangue, a começar pelo Estado e acabar numa Justiça, paupérrima de meios, que protegem e colaboram com os poderosos de sempre.
É fartar vilanagem!!! É fartar até que a pança rebente.