quarta-feira, novembro 09, 2016

Ponto de Vista

Para Guy Debord, em A Sociedade do Espectáculo, «nunca o poder foi mais perfeito, pois consegue falsificar tudo, desde a cerveja, o pensamento e até os próprios revolucionários. Ninguém pode verificar nada pessoalmente. Ao contrário, temos de confiar em imagens, e, como se não bastasse, imagens que outros escolheram. Para os donos da sociedade, o espectáculo integrado é muito mais conveniente do que os velhos totalitarismos». Fim de citação.
Face a esta constatação sobre o poder, esqueçamos um pouco a questão dos vencimentos galácticos dos novos administradores da CGD e o espectáculo hipócrita da exigência de apresentação da declaração de rendimentos e de património.
Na verdade, quer queiramos, quer não, essa questão há muito que está decidida, como o tempo o demonstrará. Vamos por isso procurar mas é a razão para toda esta polémica e a origem dos verdadeiros problemas.
Soube-se agora que a CGD se arrisca a perder uma autêntica fortuna no "caso La Seda". A novela é mais simples de explicar do que de compreender: há precisamente dez anos a CGD recebeu orientações políticas para entrar numa aventura industrial luso-espanhola que se viria a revelar um erro tremendo.
Estiveram envolvidas a espanhola La Seda e as portuguesas Selenis e Artlant, numa relação que se prolongou entre 2006 e 2010. A fazer de santo casamenteiro, com a bênção inconsciente de todos nós, esteve sempre a CGD. As orientações políticas para esse casamento vieram de José Sócrates e do seu ministro Manuel Pinho, aquele da cena dos corninhos na Assembleia da República.
Foram executantes materiais desta espécie de menage-à-trois os socialistas Carlos Santos Ferreira e Armando Vara, à altura administradores na CGD. Este facto, só por si, evidencia as inaceitáveis cumplicidades entre muitos gestores bancários e as mafiosas orientações dos governantes.
Hoje, o casamento desfez-se e as três empresas em causa encontram-se insolventes. A factura já ultrapassa os 900 milhões de euros. Ou seja, quase 22% do esforço público de recapitalização (que é de 4100 milhões) que vai ser feito na Caixa (e que é no total de 5200 milhões).
Mas este é apenas um dos dossiers que ajudam a perceber a degradação do balanço do banco do Estado, que entre 2011 e 2015 contabilizou mais de 6000 milhões de créditos perdidos, e no fim, de todo o sistema bancário.
Por exemplo, a administração da CGD emprestou mais de mil milhões a accionistas do BCP para, em 2007, entrarem na guerra de poder dentro da instituição concorrente. Nem quero imaginar o que mais descobriríamos se efectivamente algum dia fosse realizada uma auditoria independente ao funcionamento da instituição, digamos, nos últimos 15 anos.
E o problema de fundo nem sequer é esse. O problema é que os portugueses já carregam às costas, escondida na sua dívida pública, a pena de terem de pagar também por todas as vigarices da banca privada.
A mensagem que recebem do sistema é sub-liminar e por vezes envergonhada, mas realmente muito clara: quer optem ideologicamente por um sistema totalmente assente nas regras de mercado ou por um sistema em que o Estado assuma um papel importante e estratégico na economia e na finança, serão sempre eles quem no fim paga a factura.
Isto equivale a uma sentença de morte para qualquer democracia. Ao cidadão é concedida a possibilidade de votar e em troca concedem-lhe o estatuto de uma espécie de escravo. E garantem-lhe, através do engordar mafioso de uma dívida pública absolutamente impagável que também os seus filhos e netos serão eternamente escravos.
Na Roma antiga, qualquer cidadão podia ser convertido em escravo por causa de dívidas. Os políticos conseguiram fazer isso, hoje, connosco, em massa. É caso para se dizer que há sonhos que só se realizam verdadeiramente passados mais de dois mil anos. É obra! Muito bom dia.


(Crónica na Rádio F - 7 de Novembro de 2016)