segunda-feira, agosto 05, 2019
Poesia matemática
Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
frequentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.
sexta-feira, agosto 02, 2019
Homenagem ao Zeca
A propósito do Zeca Afonso lembrei-me de uma crónica do Manuel António Pina.
« Vampiros e eunucos
Há 24 anos, feitos ontem, morreu José Afonso. Entretanto, vindos "em
bandos, com pés de veludo", os vampiros foram progressivamente ocupando
todos os lugares de esperança inaugurados em 1974, e hoje (basta olhar
em volta) os "mordomos do universo todo/ senhores à força, mandadores
sem lei", enchem de novo "as tulhas, bebem vinho novo" e "dançam a ronda
no pinhal do rei", tendo, em tempos
afrontosamente desiguais, ganho inaceitável literalidade o refrão "eles
comem tudo, eles comem tudo/ eles comem tudo e não deixam nada".
« Vampiros e eunucos
Há 24 anos, feitos ontem, morreu José Afonso. Entretanto, vindos "em
bandos, com pés de veludo", os vampiros foram progressivamente ocupando
todos os lugares de esperança inaugurados em 1974, e hoje (basta olhar
em volta) os "mordomos do universo todo/ senhores à força, mandadores
sem lei", enchem de novo "as tulhas, bebem vinho novo" e "dançam a ronda
no pinhal do rei", tendo, em tempos
afrontosamente desiguais, ganho inaceitável literalidade o refrão "eles
comem tudo, eles comem tudo/ eles comem tudo e não deixam nada".
Talvez, mais do que legisladores, artistas como José Afonso sejam,
convocando Pound, "antenas de raça". Ou talvez apenas olhem com olhos
mais transparentes e mais fundos. Ou então talvez a sua voz coincida com
a voz colectiva por transportar alguma espécie singular de verdade.
Pois, completando Novalis, também o mais verdadeiro é necessariamente
mais poético.
O certo é que a "fauna hipernutrida" de "parasitas
do sangue alheio" que José Afonso entreviu na sociedade portuguesa de há
mais de meio século está aí de novo, nem sequer com diferentes vestes;
se é que alguma vez os seus vultos deixaram de estar "pousa[dos] nos
prédios, pousa[dos] nas calçadas". E, com ela, o cortejo venal dos
"eunucos" que "em vénias malabares à luz do dia/ lambuzam da saliva os
maiorais".
Lembrar hoje José Afonso pode ser, mais do que um ritual melancólico, um gesto de fidelidade e inconformismo.»
(Jornal de Notícias, 24.02.2011)
Obrigado a Manuel António Pina.
O povo português, estou ciente disso, nunca esquecerá o Zeca.
Zeca não é património de ninguém.
É de todo um povo em luta!
Sempre!
convocando Pound, "antenas de raça". Ou talvez apenas olhem com olhos
mais transparentes e mais fundos. Ou então talvez a sua voz coincida com
a voz colectiva por transportar alguma espécie singular de verdade.
Pois, completando Novalis, também o mais verdadeiro é necessariamente
mais poético.
O certo é que a "fauna hipernutrida" de "parasitas
do sangue alheio" que José Afonso entreviu na sociedade portuguesa de há
mais de meio século está aí de novo, nem sequer com diferentes vestes;
se é que alguma vez os seus vultos deixaram de estar "pousa[dos] nos
prédios, pousa[dos] nas calçadas". E, com ela, o cortejo venal dos
"eunucos" que "em vénias malabares à luz do dia/ lambuzam da saliva os
maiorais".
Lembrar hoje José Afonso pode ser, mais do que um ritual melancólico, um gesto de fidelidade e inconformismo.»
(Jornal de Notícias, 24.02.2011)
Obrigado a Manuel António Pina.
O povo português, estou ciente disso, nunca esquecerá o Zeca.
Zeca não é património de ninguém.
É de todo um povo em luta!
Sempre!
Homenagem
O Zeca faria hoje 90 anos.
Mas como disse Camões, o Zeca é dos poucos que por obras valorosas, se vão da lei da morte libertando.
Nunca o esqueceremos quer queira, ou não, o «papão»!
Mas como disse Camões, o Zeca é dos poucos que por obras valorosas, se vão da lei da morte libertando.
Nunca o esqueceremos quer queira, ou não, o «papão»!