quarta-feira, abril 28, 2021

Ponto de vista

A revolução do 25 de Abril de 1974 deu-se há 47 anos. Falo-vos na condição de alguém que viveu o antes e o após aquele momento único da nossa História. Importa frisar, com toda a convicção, que, o que estamos a comemorar é uma data que mudou por completo a nossa vivência como cidadãos. Não estamos a comemorar o que se seguiu nem as suas consequências políticas. Estamos a comemorar a queda de um regime e o surgimento de um outro que é radicalmente diferente. Importa que de uma vez por todas se perceba o que se está a comemorar. Antes da Revolução, Portugal vivia sob um regime fechado que ficou conhecido como Estado Novo, desde 1933 a 1974. O Estado Novo português foi muito mais que um Estado forte e repressivo. O regime foi também sustentado por um imaginário poderoso, espalhado por todas as áreas da vida dos portugueses, da política à economia à educação e fundamentalmente das relações pessoais e interpessoais. Ao estudar os manuais escolares durante aquele período, compreende-se esses textos como um sistema cultural, um sistema de símbolos em interação, o que quer dizer, como uma rede ou uma teia de significações que se entrecruzam que integram um corpo simbólico, que ao mesmo tempo age sobre a vida real e a reflete. O imaginário salazarista tem o seu simbolismo na saudade e no sebastianismo, o passado e o futuro – que projeta a imagem de um país antigo, tradicional e humilde, mas com aspirações de grande Império, por um lado, pois, o desejado medievalismo, bucólico e cordato, figurado pelo tema do português suave. Por outro, a ambição do Império, ousada e épica, figurada pelas caravelas. A revolução do 25 de Abril de 1974 que pôs fim à ditadura, foi conduzido pelo Movimento das Forças Armadas. Era o fim de um país iletrado, beato, fechado e sem liberdade. Os acontecimentos de 25 de Abril de 1974 foram acompanhados, ao mesmo tempo, com esperança, ceticismo e incredulidade, no mundo todo. Àquela altura, poderia parecer mais um golpe militar que encobria intenções déspotas com promessas de libertação. Mas também um revigorante sopro de liberdade e um sério aviso a outras ditaduras, seja na Europa ou na América do Sul – em países como Espanha, Grécia, Chile e Brasil. Podemos afirmar, sem qualquer margem de erro, porque vivemos os acontecimentos com a paixão natural de que algo de surpreendente estava a acontecer na nossa terra, que a revolução teve bases bem populares, ainda que conduzida pelos militares portugueses. A eles coube, tão somente, acordar para a realidade e contestá-la, já que detinham os meios para tanto. O movimento militar que derrubou o governo de Marcelo Caetano, foi o reconhecimento, de facto, de que a opinião pública portuguesa exigia caminhos novos para o país, que há 13 anos se exauria numa guerra inglória nas suas colónias. O movimento foi rápido e praticamente sem derramamento de sangue, que é a marca das ações que já surgem apoiadas no consenso popular. É a festa popular nas ruas culminada com a libertação dos presos políticos. E logo na manhã de 26 de Abril se sentia um país diferente e calmo. O comércio e os bancos estavam abertos. Porém, alguns sinais do quotidiano sinalizavam as mudanças em andamento: indícios do movimento militar, apenas tanques estacionados em pontos estratégicos, papel picado ainda nas ruas e, sinal mais evidente, os jornais ‘sem censura’, a noticiar e a comentar tudo. A comunicação social livre da censura, dedica quase todo o espaço aos recentes acontecimentos, realçando sempre a normalização da vida política e as manifestações de apoio ao Movimento das Forças Armadas. A incrível rapidez com que o povo aderiu ao movimento das Forças Armadas leva a crer que a ansiedade pela mudança do regime, mantido durante 48 anos, estava decididamente arreigada na mente de todos os cidadãos portugueses. Hoje, quarenta e sete anos volvidos, arriscar-me-ia a dizer que se cada português reflectir sobre aqueles que deviam ser os guardiões do regime, facilmente chegará à conclusão de que a Política não tem, nunca teve actores dignos, a senhora Justiça prostituiu-se a quem lhe dá mais e o Jornalismo definha para o pântano. São três pilares fundamentais para qualquer democracia saudável e que neste momento estão frágeis, em grande parte por culpa própria dos seus actores, nos quais não se vislumbra nem humildade, nem espírito combativo, apenas interesses egoístas. Ao reflectir sobre o 25 de Abril o realce no meu pensamento é para o facto de se ter esgotado o romantismo. As revoluções só são possíveis se em cada revolucionário existir esta capacidade ou atributo. A única coisa que nos faz lembrar a durabilidade deste romantismo são os cravos. São os únicos que se mantêm firmes e sempre viçosos na arte de fazer memória. Mas há também em cada um de nós a capacidade firme para não deixar que a roda gire para trás. Para defendermos o património de liberdade que outros nos legaram. E isso passa por cada português. Cada um dos que viveu esse Abril de sonhos, cada um de nós, digo, tem de os passar aos vindouros com a mesma veemência com que os sentiu. Abril de setenta e quatro é um facto histórico, uma revolução específica e muito própria. Tem de ser contada e amada como merece. Só assim pode ser protegido o futuro da democracia no nosso país. E essa crença é o melhor legado que podemos deixar aos nossos filhos e netos. E quanto a ser mais cultos (sobre "civilizados", se se avaliar pelas regras da mais elementar civilidade e boa educação, o panorama é terminal e irrecuperável), só se for nos "saberes" de teclado de telemóvel e rede dita social. Quanto ao resto, vai este povo embrutecendo mais e, muito convenientemente, mais. Perigosamente acreditando em falsos profetas, sebastianismos bolorentos que nos querem calar. O 25 de Abril não é exclusivo de ninguém, é de todos os que acreditam no sonho. Sim, o sonho é e será sempre a nossa arma como escreveu o poeta José Gomes Ferreira:

Há quem julgue que nos venceu
só porque estamos para aqui, famintos e nus,
de novo sem terra nem céu.
a apanhar do chão, às escondidas do luar,
os frutos podres caídos dos ramos.

Mas não.

Temos ainda uma arma de luz
pura lutar: SONHAMOS.
enquanto os outros, os traidores,
sem lutas nem cicatrizes
entregam a terra ao rasto dos gamos
e douram os olhos dos velhos senhores
com voos de perdizes...
Sim, sonhamos.
E o sonho quem o derrota?

Tenham uma boa semana.

(Crónica na Rádio F - 26 de Abril de 2021)

sexta-feira, abril 16, 2021

Ponto de vista

Foi recentemente publicado um estudo do economista Eugénio Rosa sobre a situação calamitosa em que se encontra a Administração Pública e, mais concretamente o desempenho como serviço público e da qualidade do emprego e das condições de trabalho dos funcionário públicos. Importa que se faça uma análise ao documento para, desta forma, compreendermos como os governantes, todos eles, olham para a Administração Pública. Para início de conversa, o economista Eugénio Rosa começa por considerar que a crise da Administração Pública é causada por falta de investimento público, pela existência de um sistema remuneratório desmotivante, e pelo aumento da precariedade, tudo isto agravada pelo Covid, e por normas burocráticas que impedem qualquer gestão eficiente, eficaz e que responsabilize. A grave crise de saúde pública causada pelo Covid e as medidas tomadas por força dela – confinamento, teletrabalho, etc. - por um lado agravaram, na opinião de Eugénio Rosa, ainda mais a crise existente, provocando a desorganização da Administração Pública, a produtividade e a capacidade de resposta que diminuíram significativamente e que foi sentido de modo agudo por todos os portugueses. Tudo isto associado ao uso e abuso de meios da Administração Central para disseminar incompetentes e medíocres pelos órgãos de direcção das instituições. O que se verificou a nível do SNS, onde a falta de meios era notória determinando continuas ruturas de muitos hospitais públicos, só atenuada pelo esforço e dedicação quase sobre humana dos profissionais de saúde, médicos, enfermeiros, Técnicos de diagnósticos, Assistentes Técnicos e Assistentes Operacionais, estes três últimos muitas vezes esquecidos mas também fundamentais é uma prova da situação a que chegou a Administração Pública portuguesa como consequência da política dos sucessivos governos. O discurso oficial de que as graves dificuldades que o SNS enfrentou e enfrenta resultam apenas do carácter excecional desta crise de saúde pública é apenas meia-verdade que procura iludir a opinião pública pois, a verdade total é outra. Um dos aspectos que mais surpreende na atuação do governo é que parece não ter aprendido com a grave crise económica e social que o país enfrenta e com a necessidade de reforçar a Administração Pública com os meios que esta necessita para poder responder às necessidades do país e dos portugueses. Outro aspecto negativo, que mostra com clareza que o atual governo, ainda não aprendeu com a grave crise que o país enfrenta, é que é necessário dotar a Administração Pública com profissionais, em quantidade e com as competências necessárias par responder às necessidades do país, e não o recurso maciço a trabalho precário para suprir necessidades permanentes da Administração Pública, incluindo do SNS. São necessários e urgentes concursos públicos transparentes, com critérios bem definidos, e não com destinatários à partida já definidos, que se acabe de vez com a partidarite dos serviços e da contratação de funcionários pelo factor cunha, com recurso a malabarismos conhecidos e culminados nas célebres e hipócritas entrevistas. Ainda segundo dados do INE entre Dezembro de 2019 e Dezembro de 2020, o número de trabalhadores com contratos a prazo nas Administrações Públicas, central, local e regional, aumentou em 21%, sendo a subida na Administração Central de 22%. Entre 2019 e 2020, a taxa de precaridade aumentou de 11% para 13% em todas as Administrações Públicas, e de 13% para 15% na Administração Central. Muito se diz sobre as remunerações dos trabalhadores da Função Pública para os criticar, mas poucos se dão ao trabalho de estudar o seu sistema remuneratório. Em 2009, Sócrates substituiu o sistema que vigorava por uma Tabela Remuneratória Única, com 108 níveis remuneratórios, em que o nível mais baixo, nível 1, é o salário mínimo nacional acabando também com as carreiras profissionais existentes. E depois “encaixou”, à força, nesses níveis remuneratórios os 728 000 trabalhadores. Para subir de nível remuneratório são necessários, para a maioria dos trabalhadores, um mínimo de 6 anos, opção gestionária, mas na maioria dos casos 10 anos, pois os 6 necessitam de ter o acordo do Ministério das Finanças. E isto porque é preciso acumular pelo menos 10 pontos dados por um sistema de avaliação anacrónico e injusto, SIADAP, e os que excedem os 10 não são considerados para a subida de nível no período seguinte. É o recurso às tão célebres e aberrantes cotas. Forma ardilosa, ladra e patriarcal de proteger os afilhados e lambe botas e prejudicar milhares de funcionários. As remunerações da Tabela Única mantiveram-se inalteráveis de 2009 até 2020, ano em que subiram 0,3%, tendo sido novamente congeladas em 2021, com exceção da mínima. Entre 2009 e 2020, os preços, sem entrar em conta com a enorme subida do IRS e da contribuição para a ADSE, aumentaram 12%. As alterações que têm tido, para além dos 0,3%, foram no nível mais baixo da tabela, a que é igual ao salário mínimo nacional. Com a subida deste, os 3 primeiros níveis desapareceram. Em 2021, o nível 1 já corresponde ao nível 4 da de 2009, o que causa distorções e injustiças, pois milhares de trabalhadores com vários anos de Função Pública que ganhavam mais entre 50€ e 185€ do que o salário mínimo nessa altura níveis 2, 3 e 4, agora recebem apenas o salário mínimo. Como consequência o poder de compra dos trabalhadores da Função Pública no fim de 2020 continuava a ser inferior ao de 2010. Entre 2010 e 2020, o poder de compra da remuneração base média mensal dos trabalhadores de todas as Administrações Públicas Central, Local e Regional diminuiu em 10%. No entanto há categorias profissionais onde a perda é maior. Por exemplo, para os médicos a perda foi de 16%; para os enfermeiros de 9%; para os professores de 13%; para os Técnicos superiores a perda de poder de compra atinge 16%. É evidente que, com o sistema remuneratório como aquele que referimos, e com estas perdas de poder de compra, associados ao congelamento durante anos a fio das remunerações, não se consegue nem motivar e compensar devidamente aqueles que mais se empenham e com maior produtividade que estão na Função Pública nem atrair para a Administração Pública trabalhadores com competências elevadas para ela poder responder às necessidades do país e dos portugueses. São por todas estas razões que afirmamos que a Administração Pública enfrenta atualmente uma profunda crise que o governo não compreende ou ignora. E para agravar ainda mais a situação, ela continua metida num “colete de forças” e um sistema de controlo e de normas burocráticas que impedem qualquer gestão eficiente, eficaz e que responsabilize. 
Tenham uma boa semana.

(Crónica Rádio F - 12 de Abril de 2021)

terça-feira, abril 13, 2021

Faturas e farturas da festa.

 Numa altura em que se anuncia a chegada de milhões para salvar uma economia debilitada, e não apenas pela COVID – 19, pois já antes havia sinais preocupantes que faziam anunciar uma grave crise económica, eis que o escândalo rebenta. O jornal onlineO Político”, na secção dedicada à Europa, trazia um extenso trabalho sobre Portugal, mais concretamente sobre os gastos exorbitantes de uma Presidência Europeia que calhou em sortes ao nosso país. O artigo é demolidor sobre a forma como os governantes de um país que não sabendo programar, planificar e aplicar uma estratégia de ação que minimizasse as consequências nefastas de uma pandemia sabe, exemplarmente, dar o golpe do antiquíssimo conto do vigário às verbas da União Europeia destinadas à dita Presidência. A fatura já foi entregue à União Europeia, para ser processado o seu pagamento que, mais uma vez, olha de soslaio para as despesas ali apresentadas. O título do artigo não podia ser mais sugestivo: «A presidência "fantasma" de Portugal da UE acumula despesas pessoais». Portugal assumiu a Presidência da União Europeia em Janeiro de 2021. Numa altura em que o país apresentava, ao nível da pandemia, valores preocupantes ocupando o primeiro lugar no número de infetados, internados e mortos a nível mundial. Era suposto que, face à grave crise sanitária que se vivia em Portugal e, muito particularmente em Lisboa, que a Presidência privilegiasse os encontros online. Ou seja, para mal de toda uma elite governativa que preferia o fausto e a pompa da Presidência, eis que uma pandemia relega-a para uma "presidência fantasma" improvável de realizar cúpulas espalhafatosas, tão useiras e costumeiras, neste nosso Portugal. A pandemia não impediu que os governantes gastassem verbas, à tripa forra, como se tratassem de eventos presenciais, durante os seis meses à frente do Conselho da UE. Desde que assumiu as rédeas da presidência rotativa do Conselho, em Janeiro, Portugal assinou contratos no valor de centenas de milhares de euros para aquisição de equipamentos, bebidas e até roupas para eventos que dificilmente seriam presenciais. A presidência gastou 260 591 euros, para equipar um centro de imprensa em Lisboa - embora as conferências de imprensa da presidência fossem realizadas online e os jornalistas estrangeiros não viajariam para Lisboa. O projeto foi confiado a uma empresa que não obtém um contrato público desde 2011, e cuja experiência anterior em contratos com o setor público envolveram a organização de entretenimento para festas de aldeia. As pessoas que visitaram tal «centro de imprensa» descreveram-no como uma “sala fantasma” de cadeiras e mesas vazias. Esta gente não se terá questionado que estávamos no meio de uma pandemia e que as conferências de imprensa podiam ser realizadas, em segurança, via online? Claro que sabiam. Mas para além desta logística, de nenhum interesse, ainda houve os célebres patrocínios que nunca faltam nestas festas. Existem acordos com duas empresas portuguesas de bebidas - a produtora de café Delta Cafés e o grupo de refrigerantes Sumol + Compal da multinacional PepsiCo, em Portugal e um acordo com a gigante portuguesa da pasta e do papel The Navigator Company. Lembrar que a Navigator recebeu no ano passado um empréstimo de quase 28 milhões de euros do Banco Europeu de Investimento. Sabe-se como a Navigator é a porta giratória para ex membros do governo. Mas se as questões preferenciais pela Navigator são explicáveis à luz da falta de transparência como justificar que a Presidência Portuguesa aceite o patrocínio de uma empresa cujas vastas plantações de eucaliptos foram ligadas a incêndios florestais mortais em Portugal e à apropriação indevida de terras em Moçambique para a florestação? Mas há mais! A presidência não se coibiu de contratualizar com uma vinícola o serviço de bebidas no valor de 35 785€ e assinou um contrato de 39 780€ para a compra de 360 camisas e 180 fatos Decididamente este governantes, e outros que tais, não aprendem. É uma classe elitista que recorre a todo o tipo de minas e armadilhas para levar o dinheiro aos mesmos de sempre. Ao longo da nossa História foi sempre assim. Portugal continua a ter, para gáudio da elite parasitária e pedinte, um sistema de contratação pública muito conveniente para todo o tipo de alçapões. Não há justificativo de despesas, para além do usual «ausência de recursos próprios», que possibilita essa vergonha nacional que dá por nome de ajustes directos. Não há nenhum mecanismo em vigor para evitar conflitos de interesse, e os contratos são frequentemente concedidos a empresas amigas, favorecidas pelo governo. Para completar é muito difícil provar a corrupção porque a falta de profissionalismo no sistema de contratos públicos é tal que o uso indevido de fundos é muitas vezes devido à incompetência, e não à fraude total. Em Setembro do 2020, a Comissão Europeia abordou essa questão no seu Relatório 2020 sobre o Estado de Direito, castigando Portugal por não fazer o suficiente para combater a corrupção. Se uma Presidência se permitiu a todo o tipo de transações nada claras, imagine-se o que será com os milhões que se aguardam. Exige-se respeito pelos mais de 100 mil desempregados, pelos milhares de cidadãos que não vão ter os seus postos de trabalho, dado o aumento de empresas a falirem e que irá aumentar a miséria de um país.


(Crónica no Jornal O Interior - 8 de Março 2021)

sexta-feira, abril 09, 2021

Ponto de vista

 No dia 28 de agosto de 1963, Martin Luther King discursava para cerca de 250 mil pessoas sobre seu sonho de ver uma sociedade em que todos seriam iguais sem distinção de cor e raça. Um discurso que ficou para a História da Humanidade como: «I have a dream». Disse o reverendo pastor Martin Luther King nessa tarde de Agosto: "Estou feliz por estar hoje convosco num evento que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nosso país.», fim de citação. Luther King tinha razão tudo não passou de uma demonstração pela liberdade. Liberdade essa que em muitos estados norte americanos e na quase totalidade do globo continua a não se verificar. Basta lembrar os casos recentes de racismo que terminaram na morte de cidadãos por todo o lado. Como dizia Luther King devemos encarar a trágica realidade de que o negro ainda não é livre. A vida do negro está ainda infelizmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação. O negro ainda vive numa ilha isolada de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Mas hoje já não é só o negro. É o branco desprotegido, que pelo desemprego foi atirado para uma qualquer rua, é o cigano a quem a sociedade exige que cumpra as leis do país e que esse mesmo país o desconsidera, é o emigrante que foge da miséria para ser escravo, como noutros tempos outros irmãos seus foram forçados a ser escravos. É a luta desigual entre os que tudo detêm e os que vendem a força do trabalho. Vem tudo a propósito de um recente memorando da comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic, que insta as autoridades portuguesas a combater de forma mais determinada o aumento do racismo no país. Mas dizer que o memorando também podia e devia ser endossado à quase totalidade dos países da União. A comissária Dunja Mijatović manifesta preocupação face ao aumento do número de crimes motivados pelo ódio racial, assim como do discurso do ódio, visando particularmente os ciganos, os afro descendentes e as pessoas percecionadas como estrangeiras em Portugal. Dunja Mijatović recomenda ainda que a polícia e o Ministério Público adoptem uma definição mais lata de “crime de racismo” e realizem rapidamente uma investigação rigorosa e imparcial a todos os incidentes de cariz racista. No memorando, a comissária considera que o país necessita confrontar o seu passado colonial. E passo a citar a Comissária: “É importante tomar consciência das estruturas historicamente repressivas do colonialismo, dos preconceitos racistas entranhados na sociedade e das suas ramificações até aos nossos dias”, fim de citação. Nesse sentido, a comissária europeia afirma serem necessários esforços para debelar os preconceitos racistas contra as pessoas de ascendência africana, herdados de um passado colonial e do período da escravatura e aponta os currículos escolares para atingir essa consciencialização. Seria de todo conveniente refazer os conteúdos das aprendizagens ao nível da História que fala dos feitos do povo como actos de bravura e de epopeia mas esquece o lado dos escravizados sem os quais a mesma seria de todo impossível. É necessário e urgente, já há maturidade suficiente para o fazer, para olhar para os dois lados da moeda. Sem falsos heroísmos e patriotismos bacocos e sem paternalismos nem hipócritas formas de reescrever a História. Essa existe e está aí. Não se nega. Importa é conhecê-la na sua globalidade. Portugal usou e abusou da escravatura. Só o Brasil, antiga colónia portuguesa, recebeu 5 milhões de escravos durante 300 anos. Importa que os conteúdos programáticos refiram este lado da história. “Esforços adicionais são necessários para Portugal chegar a um acordo sobre o passado de violações dos direitos humanos, para combater os preconceitos racistas contra os afro-descendentes, herdados de um passado colonial e do comércio de escravos”, refere o Conselho da Europa, ao mesmo tempo que urge que o governo português repense a forma como se ensina a história colonial nas escolas mas igualmente a educação para a cidadania com respeito pelo outro. E refere ainda o Conselho da Europa a necessidade de desenvolver iniciativas destinadas a combater a discriminação contra os ciganos, como forma de combater o anticiganismo, “que continua disseminado na sociedade portuguesa e presente no discurso público de certos responsáveis políticos”, acrescenta a comissária. O governo português responde com iniciativas de cosmética que a nada conduzem a não ser fingir que algo foi feito para que tudo fique na mesma. As sucessivas violações aos direitos de todas as minorias vão acontecendo num país em que se continua a pensar que a memória se apaga com a destruição de monumentos. A dor é muito profunda e sangra. Adaptando a frase final do discurso de Martin Luther King aos tempos modernos diria que quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar de cada estado, de cada cidade, vila e aldeia, seremos capazes de fazer chegar mais rápido o dia em que todos os filhos de Deus, mas todos sem excepção, poderão dar as mãos e cantar as palavras da antiga canção espiritual negra: Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo Poderoso, somos livres, finalmente. 
Este é também o meu Humanismo.
Tenham uma boa semana.
 
(Crónica na Rádio F - 5 de Abril de 2021)