A semana que findou
ficou marcada por vários acontecimentos que, ainda que aparentemente
dissociados, relevam a hipocrisia da politiquice em que se transformou a governação
do reino de Portugal.
Por um lado, a
prescrição dos crimes de que vinha acusado o banqueiro Jardim Gonçalves - burla
e falsificação de documentos – e que lhe haviam valido a aplicação de uma multa
de um milhão de euros e dois anos de cadeia. Tudo foi perdoado, coisa que já
vai sendo hábito sempre que estão em causa ricos e poderosos.
Por outro lado, João
Rendeiro, outro banqueiro igualmente acusado do mesmo tipo de crimes, também já
está na calha das prescrições. Só que aqui falamos de uma multa de 4 milhões de
euros. É como se uns casos andassem à boleia dos outros.
Como se não bastasse este
triste espetáculo da impotência do Estado para fazer cumprir as leis junto do
tipo de gente que ajudou a colocar o país no buraco em que ele se encontra, vem
agora o Ministério Público reconhecer publicamente que também no caso «Face
Oculta» não haverá ninguém a ir para a prisão. Que sosseguem Armando Vara e
Penedos & C.ª. É mais fácil fazer passar um camelo pelo buraco da agulha,
do que mandar gente desta para a cadeia.
Pelo meio roubam-nos
salários, reformas, pensões, apoios sociais, justiça, serviços de saúde, de
educação, etc. O facto de ser possível que a estes senhores se perdoem mais
milhões do que os cortes que nos fazem, diz tudo sobre o lamentável estado a
que chegou o nosso Estado.
O pior é que o problema
já não é só a metáfora de termos o ladrão dentro do cofre. O problema já
consiste no facto de o ladrão da metáfora se achar no direito de mandar calar
quem o incomode. Vem a isto a propósito da polémica suscitada pela iniciativa
de um grupo de cidadãos que assinou um manifesto propondo a reestruturação da
dívida portuguesa. Recordemos que Cavaco Silva, bem como Passos Coelho e Paulo
Portas, passam a vida a falar na necessidade de consensos. Quando, pela
primeira vez em muitos anos, se junta um grupo de 70 individualidades dos mais
variados quadrantes políticos, da esquerda à direita, para consensualmente
apontar um caminho, aqui d`el Rei que temos por aí os traidores à porta.
O poder instituído, que
lá no fundo sabe bem como a dívida pública é absolutamente impagável nos termos
atuais, reagiu com o mesmo pudor de um ladrão sem vergonha apanhado no ato: com
irritação. Cavaco demitiu dois assessores. Passos Coelho vociferou contra o
manifesto e contra quem pensa diferente. De Portas nem falo. Para esta gente os
consensos só existem quando são os deles. O resto é terrorismo.
Nem sequer vou aqui
discutir o falso argumento do sentido de oportunidade. Até porque nunca vi
ninguém do poder reconhecer oportunidade a algo que não lhe agrade ou para o
qual não tenha resposta. Vou tão só falar do que nos espera.
O problema de Cavaco e
de Passos, que é diferente do problema dos portugueses, tem exatamente a ver
com a manutenção do poder. A estratégia consiste em empurrar a dívida com a
barriga, fazendo simultaneamente crer, até tão tarde quanto possível, que ela
ainda é pagável. Sócrates tentou essa estratégia com o PEC 4 e falhou. Cavaco e
Passos só pedem a Deus que, quando a sua também falhar, já lá não estejam.
O problema dos
portugueses é outro, uma dívida pública que arrasa o investimento público e privado
e que a prazo pode ditar salários “à chinesa”, hipotecando o futuro de milhões e
fazendo aumentar ainda mais os números da já astronómica emigração em massa.
Esse oásis para
capitalistas sem escrúpulos, assente numa escravatura dos tempos modernos, é o
sonho dos mercados. Aqueles que nos governam e fazem as leis que permitem aos nossos
ricos fugir à justiça, obrigando os pobres a passar pelo buraco da agulha, são
apenas os agentes de tal pesadelo.
Parafraseando Antero do
Quental, Portugal cometeu muitos erros ao longo da história: o conservadorismo
religioso e inquisitório da Contra-Reforma dos séculos XVI e XVII que sufocou o
pensamento inventivo e a razão crítica, a centralização política imposta por recorrentes
períodos de domínio absoluto que encorajou a submissão e a resignação, o
sistema económico dos Descobrimentos cujos benefícios intoxicantes desviaram os
portugueses da ideia de uma gestão financeira prudente.
Eu vou ainda mais
longe. Desde a expulsão dos judeus, no fim do século XV, passando pela funesta
aventura de D. Sebastião em Alcácer Quibir, até ao esbanjamento do ouro do
Brasil, Portugal é o melhor exemplo para uma cartilha do disparate.
Nos tempos modernos, o
ouro do Brasil foram os fundos comunitários. Com os resultados que se viram, por
sinal numa altura em que o atual presidente da República era o primeiro-ministro.
O que não augura nada de bom para as suas opiniões anti manifesto. Porque ela
prova que os consensos afinal eram só para inglês ver.
Ou, para os mais crentes,
somos simplesmente um reino do disparate onde a rainha está gagá e é o
chanceler quem vai nu. Com manifesto ou sem ele.
Tenham um bom dia e, no
que nos deixarem, uma óptima semana.
(Crónica na Rádio F - 17 de Março de 2014)