A semana que findou foi
marcada por um acontecimento político que, a maioria dos jornalistas,
comentadores e os fazedores de opinião não lhes ligaram patavina. Teria sido
por esquecimento, por falta de oportunidade, por lapso ou simplesmente por
conveniência de serviço? Fica a dúvida. Do que não há dúvida nenhuma, é que
Cavaco, na sua admirável forma peculiar de exercer a função de presidente da
república, não enviou para o tribunal Constitucional, para fiscalização, o
corte brutal nas reformas, através da denominada, eufemisticamente, contribuição
extraordinária de solidariedade. Bem, mas perguntarão alguns, e teria Cavaco
que enviar para o Tribunal Constitucional tal norma? Respondemos com toda a
frontalidade: TINHA OBRIGATORIAMENTE.
E porquê? Nesta coisa chamada
política deve existir um princípio que, para além de outros, se aprende no
berço. Seja ele de ouro, prata ou simples alcofa de pano. O princípio é o da
coerência. Coerente uma vez, coerente toda a vida. Cavaco não o foi. Cavaco
renegou a sua condição de presidente de todos os portugueses. Cavaco renegou a
Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir. Cavaco pura e simplesmente foi
igual a si próprio, hipócrita. Para os mais distraídos recordar que, em 2013,
Cavaco Silva enviou a contribuição extraordinária de solidariedade, tal como
estava então "desenhada", para fiscalização sucessiva. No pedido
enviado ao Tribunal Constitucional, o Presidente da República alertava que
corte de 3,5% a 10% representava um “agravamento fiscal profundamente desigual
e até exorbitante” do esforço exigido aos pensionistas com rendimentos
superiores a 1350 euros. E foi ainda mais longe. O facto de incidir sobre
fundos de pensões privados, criticava ainda Cavaco, conferia-lhe ainda a
natureza de um imposto “confiscatório e expropriativo”. O Tribunal Constitucional
não foi sensível aos argumentos apresentados e deu luz verde ao corte, no
pressuposto de que seria temporário. Um ano depois, em 2014, com este
“temporário” a transformar-se em definitivo, com uma contribuição extraordinária de
solidariedade com cortes ainda maiores e mais abrangentes, recordar, para os
mais distraídos, que nesta nova proposta do governo PSD/CDS, não são só as
reformas a partir de 1350 euros que vão levar a paulada mas, desde logo a
partir dos 1000 euros. Cavaco abdicou de pedir a fiscalização preventiva
da norma respectiva pelo Tribunal Constitucional. A imprensa avança como
explicação de mais esta incoerência de Cavaco a sua vontade, que este
jornalismo independente há-de ter descoberto saberão lá os seus profissionais
onde, de não perturbar a saída da troika que permanecerá em Portugal mesmo
depois do fim do chamado “programa de assistência”. Nada a ver, portanto, com o
prazo que o Tribunal Constitucional teria para se pronunciar, mas apontar
para nova constatação de que este Governo e esta maioria exercem o poder à
revelia da Constituição. Os cortes nas pensões, relativos aos meses de
Janeiro e Fevereiro começarão a ser aplicados apenas em Junho, seguramente
também para não perturbar os festejos da saída que de limpinho tem apenas que a
troika vai continuar por cá por muitos e maus anos. A medida já devia estar a
ser aplicada desde Janeiro, mas segundo o ministro Mota Soares problemas com o
sistema informático obrigaram a adiá-la e ainda não sendo certo se o impacto
começa a sentir-se com o pagamento da prestação de Março ou de Abril. Certo é
que os acertos relativamente aos primeiros meses do ano só ocorrerão em Julho,
na altura em que os pensionistas recebem o subsídio de férias. O objectivo,
garantiu o ministro da assistência social é garantir a “estabilidade de
rendimentos destes pensionistas”. Mas que estabilidade? Que arrojo e falta de
pudor tem um Mota Soares em vir falar de estabilidade de rendimentos quando se
roubam milhares? Haja decência e respeito pela inteligência dos cidadãos. Já
sobre a pensão de sobrevivência que, como se sabe, é atribuída ao viúvo, viúva
ou filhos e corresponde a uma percentagem da pensão (50% a 60%, consoante se
trate da Segurança Social ou da Caixa Geral de Aposentações) a que a pessoa que
morreu teria direito, o ministro da assistência não se pronuncia. O que revela
mau presságio. Segundo o que é conhecido a redução das pensões ocorre porque
essa percentagem é alterada e passa a depender do total das pensões que o beneficiário
recebe. Mais um roubo. De roubo em roubo vai a saída limpinha ficando cada vez
mais suja.
Tenham um bom dia e uma
excelente semana dentro do que nos vai sendo imposto.
(Crónica na rádio F - 3 de Março de 2014)