quinta-feira, março 06, 2014

Ponto de vista



A semana que findou foi marcada por um acontecimento político que, a maioria dos jornalistas, comentadores e os fazedores de opinião não lhes ligaram patavina. Teria sido por esquecimento, por falta de oportunidade, por lapso ou simplesmente por conveniência de serviço? Fica a dúvida. Do que não há dúvida nenhuma, é que Cavaco, na sua admirável forma peculiar de exercer a função de presidente da república, não enviou para o tribunal Constitucional, para fiscalização, o corte brutal nas reformas, através da denominada, eufemisticamente, contribuição extraordinária de solidariedade. Bem, mas perguntarão alguns, e teria Cavaco que enviar para o Tribunal Constitucional tal norma? Respondemos com toda a frontalidade: TINHA OBRIGATORIAMENTE.
E porquê? Nesta coisa chamada política deve existir um princípio que, para além de outros, se aprende no berço. Seja ele de ouro, prata ou simples alcofa de pano. O princípio é o da coerência. Coerente uma vez, coerente toda a vida. Cavaco não o foi. Cavaco renegou a sua condição de presidente de todos os portugueses. Cavaco renegou a Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir. Cavaco pura e simplesmente foi igual a si próprio, hipócrita. Para os mais distraídos recordar que, em 2013, Cavaco Silva enviou a contribuição extraordinária de solidariedade, tal como estava então "desenhada", para fiscalização sucessiva. No pedido enviado ao Tribunal Constitucional, o Presidente da República alertava que corte de 3,5% a 10% representava um “agravamento fiscal profundamente desigual e até exorbitante” do esforço exigido aos pensionistas com rendimentos superiores a 1350 euros. E foi ainda mais longe. O facto de incidir sobre fundos de pensões privados, criticava ainda Cavaco, conferia-lhe ainda a natureza de um imposto “confiscatório e expropriativo”. O Tribunal Constitucional não foi sensível aos argumentos apresentados e deu luz verde ao corte, no pressuposto de que seria temporário. Um ano depois, em 2014, com este “temporário” a transformar-se em definitivo,  com uma contribuição extraordinária de solidariedade com cortes ainda maiores e mais abrangentes, recordar, para os mais distraídos, que nesta nova proposta do governo PSD/CDS, não são só as reformas a partir de 1350 euros que vão levar a paulada mas, desde logo a partir dos 1000 euros. Cavaco abdicou de pedir a fiscalização preventiva da norma respectiva pelo Tribunal Constitucional. A imprensa avança como explicação de mais esta incoerência de Cavaco a sua vontade, que este jornalismo independente há-de ter descoberto saberão lá os seus profissionais onde, de não perturbar a saída da troika que permanecerá em Portugal mesmo depois do fim do chamado “programa de assistência”. Nada a ver, portanto, com o prazo que o Tribunal Constitucional teria para se pronunciar, mas apontar para nova constatação de que este Governo e esta maioria exercem o poder à revelia da Constituição. Os cortes nas pensões, relativos aos meses de Janeiro e Fevereiro começarão a ser aplicados apenas em Junho, seguramente também para não perturbar os festejos da saída que de limpinho tem apenas que a troika vai continuar por cá por muitos e maus anos. A medida já devia estar a ser aplicada desde Janeiro, mas segundo o ministro Mota Soares problemas com o sistema informático obrigaram a adiá-la e ainda não sendo certo se o impacto começa a sentir-se com o pagamento da prestação de Março ou de Abril. Certo é que os acertos relativamente aos primeiros meses do ano só ocorrerão em Julho, na altura em que os pensionistas recebem o subsídio de férias. O objectivo, garantiu o ministro da assistência social é garantir a “estabilidade de rendimentos destes pensionistas”. Mas que estabilidade? Que arrojo e falta de pudor tem um Mota Soares em vir falar de estabilidade de rendimentos quando se roubam milhares? Haja decência e respeito pela inteligência dos cidadãos. Já sobre a pensão de sobrevivência que, como se sabe, é atribuída ao viúvo, viúva ou filhos e corresponde a uma percentagem da pensão (50% a 60%, consoante se trate da Segurança Social ou da Caixa Geral de Aposentações) a que a pessoa que morreu teria direito, o ministro da assistência não se pronuncia. O que revela mau presságio. Segundo o que é conhecido a redução das pensões ocorre porque essa percentagem é alterada e passa a depender do total das pensões que o beneficiário recebe. Mais um roubo. De roubo em roubo vai a saída limpinha ficando cada vez mais suja.
Tenham um bom dia e uma excelente semana dentro do que nos vai sendo imposto.
(Crónica na rádio F - 3 de Março de 2014)