O recente decreto judicial de prescrição das várias condenações do Banco
de Portugal ao ex-presidente do BCP, Jardim Gonçalves, é a prova de que, quando
achamos que o país já não pode cair mais fundo, cai mesmo.
A história conta-se em poucas palavras. Em causa estão acusações de
prestação de informação falsa e de falsificação de contas do BCP durante vários
anos. A entidade supervisora, o Banco de Portugal, acusou Jardim Gonçalves de
nove infrações graves, daí resultando a aplicação de uma multa de um milhão de
euros e a proibição, por nove anos, do exercício de funções no setor
financeiro. Após muitas peripécias judiciais que aqui não vou descrever, mas
que já nos habituámos a associar às elites políticas ou financeiras, a multa
prescreveu à custa de uma natural morte morrida.
Se não fosse demasiado grave, seríamos até tentados a rir perante a total
ineficácia de um sistema de entidades reguladoras e tribunais, que supostamente
existe para nos defender de vigaristas e outros que tais. Confesso que pelo
meio se me partiu a alma ao ouvir a afirmação do advogado de Jardim Gonçalves
de que «ganhar na secretaria» [extinção do processo] «era tudo» o que Jardim
Gonçalves «menos queria».
Claro que Jardim Gonçalves preferia ter ganho sem ser na secretaria, o
que, a acontecer, também não teria espantado ninguém. Para imaginarmos como
seria, basta recordar o caso dos submarinos, no qual ocorreram várias
condenações e detenções na Alemanha após ter sido provada a existência de corrupção,
enquanto em Portugal tudo acabou em águas de bacalhau e muita seriedade com
direito a certificado.
Do outro lado da barricada deste circo encontra-se uma imensa mole de
zé-povinho a quem não são permitidas quaisquer veleidades. Só para que conste,
um amigo meu foi recentemente condenado a pagar uma multa de 132 euros à
Autoridade Tributária por se ter enganado no preenchimento da sua declaração de
IRS e declarado mais 70 euros do que devia! Claro que poderia sempre ter
impugnado a multa em sede judicial. Tal como Jardim Gonçalves, é até muito
provável que visse a dita cuja ser um dia devorada pelo monstro da prescrição.
O problema é que gastaria dez ou vinte vezes mais, enquanto Jardim Gonçalves
gastou dez ou vinte vezes menos.
Esta perversidade do sistema estimula ao incumprimento da lei na
proporção direta dos valores envolvidos. Assim, quanto maior o crime, menor a
probabilidade de alguém vir um dia a ser punido.
A consequência é que a sociedade se divide hoje em dois tipos de gente.
De um lado estão espertalhões que se comportam como malabaristas financeiros.
Do outro está uma imensidão de desgraçados que montam e desmontam o circo,
suportando o fardo de autênticos eunucos fiscais. Sofrem, protestam,
esperneiam, mas não têm como fugir ao seu destino fatal.
A circunstância de eu integrar este segundo grupo não me deixa nada
confortável. O pior é que a alternativa do primeiro grupo também nunca se me
colocou, vá-se lá saber porquê...
«Os eunucos devoram-se a si mesmos, não mudam de uniforme, são venais/E
quando os mais são feitos em torresmos, defendem os tiranos contra os pais/Em
vénias malabares à luz do dia, lambuzam da saliva os maiorais/E quando os mais
são feitos em fatias, não matam os tiranos, pedem mais».
Não me revejo em todas estas sábias palavras de Zeca Afonso. Mas lá que
há por aí muita gente que sim, isso há. É que se assim não fosse, nem
aconteciam coisas destas.
(Crónica no jornal O Interior, 13 de Março 2014)