Àqueles que nunca
acreditaram no milagre da ressurreição, veio esta semana o destino desferir um
golpe fatal: Cavaco afinal ressuscitou, e, mais do que isso, até falou!
E a
muitos!
No mesmo tom de quem
nunca tem dúvidas e raramente se engana, o ressuscitado, sem chagas que se lhe
vissem, quis logo dar lições de nada e de coisa nenhuma a crentes e a descrentes,
deixando uns atónitos e os outros incrédulos.
Dúvidas ainda houvesse,
ficámos a conhecer a teologia deste pretenso Redentor dos tempos modernos: quer
fazer um segundo mandato sem turbulência. E, convenhamos, isso é obra que só se
pode alcançar com recurso a um verdadeiro milagre e a ajuda de santos.
Cavaco ficará para a
história como alguém associado, direta ou indiretamente, a todos os males que
hoje nos afligem. Desde a destruição do aparelho produtivo do país, cometida à
sombra dos fundos da então CEE, até ao escândalo BPN, que hoje arrasa
literalmente a vida de cada um de nós, Cavaco estará lá sempre. Como aquelas
comichões nos olhos que nunca conseguiremos coçar com os cotovelos.
Tudo o que é corrupção, enriquecimento
ilícito, acumular de dívidas, enfim, esquemas para defraudar o interesse
público, vem sempre a cavalo no nome de alguém que um dia conviveu, dependeu,
ou sucedeu a Cavaco.
O homem sempre argumentou
que nunca teve nada a ver com isso. Mas também nunca renegou, na palavra e nos
atos, essa gente que o apoiou e em que se apoiou na fase da sua ascensão ao
poder. Ascensão que, diga-se, apesar deste recente milagre da ressurreição, não
foi nada divina…
Cavaco é tão
responsável como outros pela situação em que nos encontramos. Foi ele quem
promulgou os sucessivos Orçamentos, do PS e do PSD. Foi ele quem, em nome duma
estabilidade que nunca serviu para nada, promoveu o galope da injustiça e do empobrecimento
que hoje entorpecem e dividem a nossa sociedade.
A sua “magistratura de
influência”, apresentada como distanciada, só conseguiu mesmo foi afastar-se dos
problemas reais das pessoas. Serviu de guarda-chuva a uma estratégia de
transferência do poder, o qual foi passando encapotadamente da arena política
para o recôndito dos gabinetes da economia. Por esta via, a “democracia” portuguesa,
que sempre foi fraca, descambou numa “democratura” bem mais forte, na qual
Cavaco representará para sempre a emblemática figura do santo das esmolinhas.
Esta atitude pretensamente
superior do ressuscitado, a da “magistratura de influência”, apresentada como
“inócua” e “equidistante” no prefácio de mais um dos seus Roteiros, encaixa às
mil maravilhas na desresponsabilização de uma classe política que nos atraiçoou
entusiasticamente até ao tutano.
A recente referência de
Cavaco ao “cansaço” dos portugueses, no contexto em que o disse, é um exemplo
do distanciamento deste presidente em relação à realidade. Com efeito, a
pobreza trazida por uma austeridade muito mal conduzida não "cansa", antes
agride a dignidade e as mínimas condições de vida desejadas para uma sociedade
civilizada.
Nesta sua cruzada auto “legitimista”,
Cavaco afirmou recentemente que «não é pelos baixos salários que se garante a
competitividade da economia». Oh, hipocrisia suprema! Vinda da boca de quem mantém
no poder um governo que insiste exatamente no contrário. Um governo que se agarra
ao exemplo da Irlanda para sustentar tal ideia, sem dizer a ninguém que por lá
o salário mínimo é mais do dobro do nosso.
Esquece Cavaco durante
a sua missa, vá-se lá saber porquê, o caso da Islândia, que levou à barra dos
tribunais os políticos que direta ou indiretamente estiveram envolvidos com o
desastre económico do país. Islândia onde não se permitiu que fosse o poder
económico a dominar sobre o poder político. Onde há democracia real. E onde a
pobreza e a miséria se arriscam hoje a ser uma fugaz recordação do passado.
Cavaco, talvez por obra
dos traumas que uma ressurreição há-de sempre acarretar, esquece tudo isto. Mesmo
quando centenas de milhares de portugueses saem à rua, exatamente para recordar,
também a ele, a hipocrisia e a iniquidade do sistema que nos governa e de que
ele faz parte.
Nesta altura, em que se
esboroa o evangelismo económico que o alcandorou ao poder, Cavaco não foi,
estranhamente, capaz de emitir um “deixem-me influenciar”, em contraponto ao já
velhinho “deixem-me trabalhar”. Quiçá porque pedir-se para trabalhar será hoje coisa
inútil, uma vez que é o próprio trabalho que escasseia.
Reconheçamos, tentar
influenciar Cavaco nem sequer seria possível. De facto não se pode pedir a um Redentor
que se renda. Na verdade, se Cristo não se rendeu um dia pelas melhores razões,
Cavaco nunca poderia render-se hoje, à falta delas, pelas piores.
Tenham um bom dia e até
para a semana.