domingo, março 06, 2022

A propósito....

Por favor leiam com muita atenção.
“Diante de Lei ” | Texto de Franz Kafka. 

Diante da Lei há um guarda. 
Um camponês apresenta-se diante deste guarda, e solicita que lhe seja permitido entrar na Lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode deixá-lo entrar. 
O homem reflecte, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar. 
– É possível – disse o porteiro -, mas agora não. 
A porta que dá para a Lei está aberta, como de costume; quando o guarda se põe de lado, o homem inclina-se para espiar. 
O guarda repara nisso, ri-se e diz-lhe:– Se é tão grande o teu desejo, experimenta entrar apesar da minha proibição. 
Mas lembra-te de que sou poderoso. E sou somente o último dos guardas. Entre salão e salão também existem guardas, cada qual mais poderoso que o outro. Já o terceiro guarda é tão terrível que não posso suportar o seu aspecto. 
O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessível para todos, pensa ele, mas ao observar o guarda, com o seu abrigo de peles, o seu nariz grande como de uma águia, a sua barba longa de tártaro, rala e negra, decide que o melhor é esperar. 
O guarda dá-lhe um banquinho, e permite-lhe sentar-se a um lado da porta. 
Ali espera dias e anos. 
Tenta infinitas vezes entrar, e cansa o guarda com as suas súplicas. 
Com frequência o guarda mantém com ele breves palestras, faz-lhe perguntas sobre o seu país, e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores, e para terminar, repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. 
O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar o guarda. 
Este aceita tudo, com efeito, mas diz-lhe:– Aceito-o para que não julgues que tenhas omitido algum esforço.
Durante esses longos anos, o homem observa quase continuamente o guarda: esquece-se dos outros, e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da Lei. Maldiz a sua má sorte, durante os primeiros anos temerariamente e em voz alta; mais tarde, à medida que envelhece, apenas murmura para si. Retorna à infância, e como em sua longa contemplação do guarda, chegou a conhecer até as pulgas do seu abrigo de pele, também suplica às pulgas que o ajudem e convençam o guarda. 
Finalmente a sua vista enfraquece-se, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganam seus olhos. Mas no meio da obscuridade distingue um resplendor, que surge inextinguível da porta da Lei. 
Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências desses longos anos se confundem na sua mente numa só pergunta, que até agora não fez. Faz sinais ao guarda para que se aproxime, já que o rigor da morte endurece o seu corpo. O guarda vê-se obrigado a abaixar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estaturas entre ambos aumentou bastante com o tempo, para detrimento do camponês.
– Que queres saber agora? – pergunta o guarda -. És insaciável.
– Todos se esforçam por chegar à Lei – diz o homem; como é possível então que durante tantos anos ninguém mais do que eu pretendesse entrar?
O guarda compreende que o homem está para morrer, e para que os seus desfalecentes sentidos percebam as suas palavras, diz-lhe junto ao ouvido com voz atroadora:– Ninguém podia pretender isso, porque esta entrada era somente para ti. Agora vou fechá-la. 

 KAFKA, Franz. A colônia Penal. Editora Livraria Exposição do livro. São Paulo. 1965. p. 71 – 72