A
revolução do 25 de Abril de 1974 deu-se há 47 anos. Falo-vos na
condição de alguém que viveu o antes e o após aquele momento
único da nossa História. Importa frisar, com toda a convicção,
que, o que estamos a comemorar é uma data que mudou por completo a
nossa vivência como cidadãos. Não estamos a comemorar o que se
seguiu nem as suas consequências políticas. Estamos a comemorar a
queda de um regime e o surgimento de um outro que é radicalmente
diferente. Importa que de uma vez por todas se perceba o que se está
a comemorar. Antes
da Revolução, Portugal vivia sob um regime fechado que ficou
conhecido como Estado Novo, desde 1933 a 1974. O Estado Novo
português foi muito mais que um Estado forte e repressivo. O regime
foi também sustentado por um imaginário poderoso, espalhado por
todas as áreas da vida dos portugueses, da política à economia à
educação e fundamentalmente das relações pessoais e
interpessoais. Ao estudar os manuais escolares durante aquele
período, compreende-se esses textos como um sistema cultural, um
sistema de símbolos em interação, o que quer dizer, como uma rede
ou uma teia de significações que se entrecruzam que integram um
corpo simbólico, que ao mesmo tempo age sobre a vida real e a
reflete. O imaginário salazarista tem o seu simbolismo na saudade e
no sebastianismo, o passado e o futuro – que projeta a imagem de um
país antigo, tradicional e humilde, mas com aspirações de grande
Império, por um lado, pois, o desejado medievalismo, bucólico e
cordato, figurado pelo tema do português suave. Por outro, a ambição
do Império, ousada e épica, figurada pelas caravelas. A revolução
do 25 de Abril de 1974 que pôs fim à ditadura, foi conduzido pelo
Movimento das Forças Armadas. Era o fim de um país iletrado, beato,
fechado e sem liberdade. Os acontecimentos de 25 de Abril de 1974
foram acompanhados, ao mesmo tempo, com esperança, ceticismo e
incredulidade, no mundo todo. Àquela altura, poderia parecer mais um
golpe militar que encobria intenções déspotas com promessas de
libertação. Mas também um revigorante sopro de liberdade e um
sério aviso a outras ditaduras, seja na Europa ou na América do Sul
– em países como Espanha, Grécia, Chile e Brasil. Podemos
afirmar, sem qualquer margem de erro, porque vivemos os
acontecimentos com a paixão natural de que algo de surpreendente
estava a acontecer na nossa terra, que a revolução teve bases bem
populares, ainda que conduzida pelos militares portugueses. A eles
coube, tão somente, acordar para a realidade e contestá-la, já que
detinham os meios para tanto. O movimento militar que derrubou o
governo de Marcelo Caetano, foi o reconhecimento, de facto, de que a
opinião pública portuguesa exigia caminhos novos para o país, que
há 13 anos se exauria numa guerra inglória nas suas colónias. O
movimento foi rápido e praticamente sem derramamento de sangue, que
é a marca das ações que já surgem apoiadas no consenso popular. É
a festa popular nas ruas culminada com a libertação dos presos
políticos. E logo na manhã de 26 de Abril se sentia um país
diferente e calmo. O comércio e os bancos estavam abertos. Porém,
alguns sinais do quotidiano sinalizavam as mudanças em andamento:
indícios do movimento militar, apenas tanques estacionados em pontos
estratégicos, papel picado ainda nas ruas e, sinal mais evidente, os
jornais ‘sem censura’, a noticiar e a comentar tudo. A
comunicação social livre da censura, dedica quase todo o espaço
aos recentes acontecimentos, realçando sempre a normalização da
vida política e as manifestações de apoio ao Movimento das Forças
Armadas. A incrível rapidez com que o povo aderiu ao movimento das
Forças Armadas leva a crer que a ansiedade pela mudança do regime,
mantido durante 48 anos, estava decididamente arreigada na mente de
todos os cidadãos portugueses.
Hoje,
quarenta e sete anos volvidos, arriscar-me-ia a dizer que se cada
português reflectir sobre aqueles que deviam ser os guardiões do
regime, facilmente chegará à conclusão de que a Política não
tem, nunca teve actores dignos, a senhora Justiça prostituiu-se a
quem lhe dá mais e o Jornalismo definha para o pântano. São três
pilares fundamentais para qualquer democracia saudável e que neste
momento estão frágeis, em grande parte por culpa própria dos seus
actores, nos quais não se vislumbra nem humildade, nem espírito
combativo, apenas interesses egoístas.
Ao
reflectir sobre o 25 de Abril o realce no meu pensamento é para o
facto de se ter esgotado o romantismo. As revoluções só são
possíveis se em cada revolucionário existir esta capacidade ou
atributo. A única coisa que nos faz lembrar a durabilidade deste
romantismo são os cravos. São os únicos que se mantêm firmes e
sempre viçosos na arte de fazer memória.
Mas
há também em cada um de nós a capacidade firme para não deixar
que a roda gire para trás. Para defendermos o património de
liberdade que outros nos legaram. E isso passa por cada português.
Cada um dos que viveu esse Abril de sonhos, cada um de nós, digo,
tem de os passar aos vindouros com a mesma veemência com que os
sentiu. Abril de setenta e quatro é um facto histórico, uma
revolução específica e muito própria. Tem de ser contada e amada
como merece. Só assim pode ser protegido o futuro da democracia no
nosso país. E essa crença é o melhor legado que podemos deixar aos
nossos filhos e netos.
E
quanto a ser mais cultos (sobre "civilizados", se se
avaliar pelas regras da mais elementar civilidade e boa educação, o
panorama é terminal e irrecuperável), só se for nos "saberes"
de teclado de telemóvel e rede dita social. Quanto ao resto, vai
este povo embrutecendo mais e, muito convenientemente, mais.
Perigosamente acreditando em falsos profetas, sebastianismos
bolorentos que nos querem calar. O 25 de Abril não é exclusivo de
ninguém, é de todos os que acreditam no sonho. Sim, o sonho
é e será sempre a nossa arma como escreveu o poeta José Gomes Ferreira:
Há
quem julgue que nos venceu
só
porque estamos para aqui, famintos e nus,
de
novo sem terra nem céu.
a
apanhar do chão, às escondidas do luar,
os
frutos podres caídos dos ramos.
Mas
não.
Temos
ainda uma arma de luz
pura
lutar:
SONHAMOS.
…enquanto
os outros, os traidores,
sem
lutas nem cicatrizes
entregam
a terra ao rasto dos gamos
e
douram os olhos dos velhos senhores
com
voos de perdizes...
Sim,
sonhamos.
E
o sonho quem o derrota?
Tenham
uma boa semana.
(Crónica na Rádio F - 26 de Abril de 2021)