Se eu tivesse de eleger uma
figura para o ano de 2014, ela seria sem dúvida o papa Francisco. E olhem que
eu sou insuspeito como ninguém…
Bem sabemos que a Igreja
católica escolhe os seus papas, bispos e demais figuras em função dos tempos e,
principalmente, das convulsões sociais. Sabemo-lo bem. Mas este papa tem ido bem
mais além. Corporiza qualquer coisa de diferente. Transporta consigo uma
formação latino americana. Uma cultura do saber erigida em vivências no terreno
da miséria, da fome, da exploração e da suprema indignidade da condição humana.
O papa Francisco despertou
consciências para problemas velhos mas que nunca foram genuinamente
denunciados. Temos por isso assistido a uma confrontação de poderes, dentro da própria
igreja católica, dirigida sobretudo aos acomodados e ao bem-estar de certas
hierarquias instaladas.
O papa denunciou a
escravatura nas suas diferentes formas. Vou apenas citar parcialmente algumas
das coisas que disse a propósito: “Perguntemo-nos, enquanto comunidade e
indivíduo, como nos sentimos (…) quando (…) nos encontramos ou lidamos com
pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos
de comprar (…) produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de
outras pessoas”.
Francisco explica que
para além de existir ainda escravatura no sentido literal do termo, há outras
formas de exploração do homem que se encaixam na mesma categoria. E cito
novamente: “(…) trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos
mais diversos sectores, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da
indústria manufatureira à mineração.” Francisco afirma que esta exploração do
homem pelo homem só é possível porque, e cito novamente, “no centro de um
sistema económico está o Deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana”. Assim
mesmo!
Para Francisco existe uma
causa profunda na raiz de todos estes males: “uma conceção da pessoa humana que
admite a possibilidade de a tratar como um objeto”. Por isso o papa apelou aos
políticos para que garantam a todos os cidadãos, e atentem bem nas suas
palavras, “trabalho digno, educação e cuidados de saúde”. Esta economia mata e o
capitalismo sem limites é “uma nova tirania”, afirmou o Papa!
Claro que continuo em
desacordo com muito daquilo que é defendido pela igreja católica, nomeadamente
no que concerne ao papel da mulher na vida eclesiástica e à questão do aborto. Mas
o mesmo diria de outras confissões. O mais significativo é que a igreja tenha
assumido um discurso oficial que trás à memória um certo cheiro a “teologia da
libertação”…
Num ano que foi de imenso
sacrifício para a maioria dos portugueses, a mensagem deste papa é uma bofetada
de luva branca nas políticas prosseguidas pelos nossos governantes. Tenho a
profunda convicção de que gente como Passos Coelho e Cavaco Silva se sentiria
muito pouco à vontade numa missa conduzida por este papa. É que só enfia o barrete
quem tiver a cabeça à medida, e está visto que os nossos governantes parecem
ter sido engordados para caber à justa dentro do gorro!
À margem de tudo o que se
possa dizer e pensar sobre o assunto, uma coisa é certa: muito daquilo que tem
sido dito por este papa, colocado na boca de uma pessoa comum, candidatava-a
imediatamente ao rótulo de esquerdista radical. O que não deixa de ser
espantoso!
Não é preciso ter-se fé
ou ser-se crente, seja da religião ou da política, para percebermos que
caminhamos em direção ao abismo. Depois deste papa, outro virá. E novos Passos
Coelhos, Cavacos, e personagens do género. Num mundo em que os ladrões estão
cada vez mais dentro do cofre, em que as desigualdades são excruciantes, e em
que a demagogia, a manipulação e a mentira são a imagem de marca da política
moderna, as palavras deste papa são como o bálsamo que colocamos numa ferida.
Não curam mas pelo menos aliviam. O que já não é pouco para quem tanto padece. E
sempre ficamos a saber que afinal não estamos todos doidos.
Aleluia e que
continue o circo!
(Crónica na Rádio F - 5 de Janeiro de 2015)