Com
a primeira sentença do caso “Face Oculta” virou-se uma página na história
recente do país amargurado que é hoje Portugal. Aparte os meandros do processo,
que a maioria de nós apenas conhece através do filtro nem sempre isento da
comunicação social, fica para registo a condenação a uma pena de prisão efetiva
de cinco anos de Armando Vara, personagem que, no seu tempo, foi incontornável
nos mais altos círculos do poder. Do que está para vir nem vale a pena falar,
até para não estragar a crónica.
É
impossível não recordar aqui a célebre frase de Lord Acton de que «se o poder
corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente». No fundo, é da história do
mundo que falamos e, por inerência, da essência da própria natureza humana.
A
resistência à corrupção (já nem sequer falo do combate à dita cuja) obriga a
uma estrutura mental individual tão peculiar e simultaneamente frágil que só
sobrevive de forma estatisticamente significativa em países com um tecido
social e legislativo muito apurado. Em suma, a resistência à corrupção implica,
desde logo, um sistema educativo verdadeiramente vocacionado para a cidadania,
mas também a construção de aparelhos financeiros, administrativos, fiscais e
jurídicos à altura de uma tarefa quase impossível num país do sul da Europa.
A
provar a dificuldade daquilo que falo estão os diversos incidentes caricatos
que trespassaram este processo. Desde caixas de robalos a escutas que ninguém
deveria ter produzido, passando por um pífio elogio final da procuradora-geral
da República àqueles que marcaram os golos deste jogo e que não fizeram mais do
que a sua obrigação, houve um pouco de tudo. Aquilo que deveria ser rotina e
asséptico transforma-se, no país da bola e das touradas, numa espécie de
paródia de ópera bufa.
Dizem
os entendidos que a corrupção é um peso morto que a economia arrasta com
sangue, suor e lágrimas. Recordo-me de há uns anos ter lido algures que se a
corrupção acabasse por artes mágicas em Portugal passaríamos imediatamente a
ter o nível de vida existente na Finlândia. Isto representaria uma subida de
cerca de 40% para todos nós. 40% de aumento nos salários reais, 40% de aumento
no poder de compra, nas reformas, na qualidade de vida e por aí fora. Quem
ficaria a perder seriam aqueles que nos últimos 40 anos têm vivido como nababos
num país de remediados.
Isto
remete-nos para uma questão mais profunda: como é possível que as coisas sejam
assim? A resposta conduz-nos ao povo. Portugal é, de facto, um país de
corruptos. A começar pelo povo, que preferiu adaptar-se a combater o fenómeno.
Edmund
Burke, político e filósofo irlandês do século XVIII e contemporâneo de Lord
Acton, autor de obras como “A Vindication of Natural Society: A View of the
Miseries and Evils Arising to Mankind”, afirmou um dia que no meio de um povo
geralmente corrupto a liberdade não pode durar muito. Defendia por isso que a
liberdade também deve ser limitada, a fim de poder ser possuída. O Marquês de
Maricá defendia, de forma bem mais popular e brejeira, que um povo corrompido
não pode tolerar um governo que não seja corrupto. E isto diz tudo da coisa.
Confesso-vos
que as condenações deste caso, que ainda havemos de ver se perduram, não me
satisfizeram particularmente. Não porque ache que não foram merecidas. Mas por
remeterem para uma suspeita generalizada de que foram apenas uma exceção num
universo de impunidade enraizada.
É
nestas alturas que me assalta aquela vontadezinha de ser ditador. O que eu não
faria então... O problema é que as penas eram capazes de não ser só de 5 anos e
não haveria prisões que chegassem. Por isso, antes que alguém me chame de
louco, vou limitar-me a sonhar. É verdade que a sociedade perdoa mais
facilmente a um criminoso do que a um sonhador. Mas pelo menos o louco tem
inimigos, enquanto o sonhador se tem a si próprio. E isso, por agora, basta-me.
Crónica publicada no jornal "O Interior" a 11 de Setembro 2014.