O artigo que aqui transcrevemos foi lido no Jornal da Madeira.
O conteúdo do mesmo vale o que vale, como testemunho pessoal, mas como documento de análise comportamental da mentalidade de uma época é revelador, quanto baste, do tipo de pessoas que ajudaram a moldar a sociedade portuguesa, estratificada, alicerçada em formas de conduta déspota e obediente.
Começa assim o artigo:
«Bando
Espírito Santo
Na
data em que escrevo (13 de Julho - dia de sorte ou dia de azar?) a procissão
ainda está no adro. Já que o Escândalo Espírito Santo ainda não atingiu a
plenitude dos seus ilícitos éticos. Meu avô conheceu bem Ricardo Espírito
Santo, íntimo de Salazar, Grand Seigneur de finas e estudadas maneiras, poucos
princípios e fervoroso adepto de que entre a honradez e o dinheiro, nem há que
hesitar, o dinheiro deve ter sempre primazia. Só vi Ricardo Espírito Santo uma
única vez. Levado por meu avô que o foi visitar no seu gabinete na antiga sede
do Banco. A alturas tantas, a secretária entrou e segredando avisou: “está lá
fora aquela francesa que lhe quer vender uma coisa”. Fanático coleccionador de
antiguidades valiosas aproveitava a maré dos refugiados aos campos de concentração
nazis, na sua maioria judeus, para lhes extorquir o que de bom conseguissem ter
trazido para sobreviverem durante o decurso da guerra. A senhora entrou. Era
uma pobre velha. De cara sofrida. Que, em que cada ruga, arquivara desgostos e
mágoas. Abriu uma pequena mala. E mostrou um Cristo pregado na cruz. Algo de
rara beleza. Escultura de alguns séculos atrás. Eu tinha feito a Instrução
Primária na Escola Francesa de Lisboa. Na altura a Língua de Moliére não tinha
segredos para mim. Cachopo de calções, tímido e constrangido perante alguém
mais velho que meu avô me havia dito “ser um dos homens mais poderosos de
Portugal”, encolhido e afundado num fofo, confortável e enorme sofá, nunca o
banqueiro podia supor que a conversa que ele entabulara com a refugiada a
percebia eu não perdendo uma só palavra sequer. Humilde, constrangida,
desesperada, a senhora (que se via ser de esmerada educação) pedia pela
antiguidade cinco contos de réis. O banqueiro regateou. Pechinchou. Insistiu.
Oferecendo quinhentos escudos. Dez vezes menos que o quase mendigado. Ácido e
doloroso o desespero entrou de repente. No olhar angustiado de quem, sem
recursos, talvez faminta, precisava vender. Choramingou. Humilhou-se. Pediu um
pouco mais. Por favor. Por favor. Quinhentos escudos, frios, agrestes,
desumanos, repetia o Espírito Santo. Até que aquela muralha de impante
arrogância e sádica intransigência culminou com “se não quer vender por
quinhentos escudos a porta está aberta e pode-se ir embora…”. Fome, medo,
miséria, resumiram-se numa rendição de cansaço: “c’est bien monsieur”. O
Espírito Santo deu-lhe as notas. A velha limpou os olhos. Fechou a mala. E
saiu. Curvada e vencida. Sabendo que meu avô não falava francês o
salafrário, a rir, com um imbecil sorriso de gozo, ainda teve o desplante de
acrescentar: “estas refugiadas estão sempre a ver se nos enganam, julgam que
nós, portugueses, não sabemos negociar…”. E como a safadeza o deve ter enchido
de impante satisfação acrescentou: “tramou-se, ela nem sabia que o que tinha na
mão, calculando por baixo, valia nunca menos de vinte e cinco contos porque é
uma peça rara da Escola Flamenga dos fins do século dezoito”. Se cem anos
tivessem passado sobre esta criminosa e vil atitude (exploração da fome para
gáudio duma vaidade balofa) continuaria nítida e pungente na minha memória.
Como se ainda, menino e moço, a estivesse a assistir. Talvez por isso nada me
admira tudo quanto está a acontecer com aquela desavinda e gananciosa família.
E no mais que ainda se irá descobrir no Bando Espírito Santo…»
http://online.
Tudo dito… não é preciso acrescentar, rigorosamente,
MAIS NADA!