segunda-feira, agosto 04, 2014

Para reflectir

O artigo que aqui transcrevemos foi lido no Jornal da Madeira.
O conteúdo do mesmo vale o que vale, como testemunho pessoal, mas como documento de análise comportamental da mentalidade de uma época é revelador, quanto baste, do tipo de pessoas que ajudaram a moldar a sociedade portuguesa, estratificada, alicerçada em formas de conduta déspota e obediente.
Começa assim o artigo:
«Bando Espírito Santo
Na data em que escrevo (13 de Julho - dia de sorte ou dia de azar?) a procissão ainda está no adro. Já que o Escândalo Espírito Santo ainda não atingiu a plenitude dos seus ilícitos éticos. Meu avô conheceu bem Ricardo Espírito Santo, íntimo de Salazar, Grand Seigneur de finas e estudadas maneiras, poucos princípios e fervoroso adepto de que entre a honradez e o dinheiro, nem há que hesitar, o dinheiro deve ter sempre primazia. Só vi Ricardo Espírito Santo uma única vez. Levado por meu avô que o foi visitar no seu gabinete na antiga sede do Banco. A alturas tantas, a secretária entrou e segredando avisou: “está lá fora aquela francesa que lhe quer vender uma coisa”. Fanático coleccionador de antiguidades valiosas aproveitava a maré dos refugiados aos campos de concentração nazis, na sua maioria judeus, para lhes extorquir o que de bom conseguissem ter trazido para sobreviverem durante o decurso da guerra. A senhora entrou. Era uma pobre velha. De cara sofrida. Que, em que cada ruga, arquivara desgostos e mágoas. Abriu uma pequena mala. E mostrou um Cristo pregado na cruz. Algo de rara beleza. Escultura de alguns séculos atrás. Eu tinha feito a Instrução Primária na Escola Francesa de Lisboa. Na altura a Língua de Moliére não tinha segredos para mim. Cachopo de calções, tímido e constrangido perante alguém mais velho que meu avô me havia dito “ser um dos homens mais poderosos de Portugal”, encolhido e afundado num fofo, confortável e enorme sofá, nunca o banqueiro podia supor que a conversa que ele entabulara com a refugiada a percebia eu não perdendo uma só palavra sequer. Humilde, constrangida, desesperada, a senhora (que se via ser de esmerada educação) pedia pela antiguidade cinco contos de réis. O banqueiro regateou. Pechinchou. Insistiu. Oferecendo quinhentos escudos. Dez vezes menos que o quase mendigado. Ácido e doloroso o desespero entrou de repente. No olhar angustiado de quem, sem recursos, talvez faminta, precisava vender. Choramingou. Humilhou-se. Pediu um pouco mais. Por favor. Por favor. Quinhentos escudos, frios, agrestes, desumanos, repetia o Espírito Santo. Até que aquela muralha de impante arrogância e sádica intransigência culminou com “se não quer vender por quinhentos escudos a porta está aberta e pode-se ir embora…”. Fome, medo, miséria, resumiram-se numa rendição de cansaço: “c’est bien monsieur”. O Espírito Santo deu-lhe as notas. A velha limpou os olhos. Fechou a mala. E saiu. Curvada e vencida.  Sabendo que meu avô não falava francês o salafrário, a rir, com um imbecil sorriso de gozo, ainda teve o desplante de acrescentar: “estas refugiadas estão sempre a ver se nos enganam, julgam que nós, portugueses, não sabemos negociar…”. E como a safadeza o deve ter enchido de impante satisfação acrescentou: “tramou-se, ela nem sabia que o que tinha na mão, calculando por baixo, valia nunca menos de vinte e cinco contos porque é uma peça rara da Escola Flamenga dos fins do século dezoito”. Se cem anos tivessem passado sobre esta criminosa e vil atitude (exploração da fome para gáudio duma vaidade balofa) continuaria nítida e pungente na minha memória. Como se ainda, menino e moço, a estivesse a assistir. Talvez por isso nada me admira tudo quanto está a acontecer com aquela desavinda e gananciosa família. E no mais que ainda se irá descobrir no Bando Espírito Santo…»

Manuel de Portugal, in Jornal da madeira, acedido em 03 de Agosto de 2014, aqui:
http://online.jornaldamadeira.pt/artigos/bando-esp%C3%ADrito-santo#.U81NHQb2w8M.facebook

Tudo dito… não é preciso acrescentar, rigorosamente, MAIS NADA!