Até o tsunami chegar
Quando era criança, divertia-me com uma espécie de mantra que eu próprio
inventei: repetia em voz alta uma palavra comum até ela se desconjuntar em meros
sons, totalmente vazios de sentido.
Hoje, lendo jornais, tenho idêntica sensação. A palavra "milhões", por
exemplo, repete-se tantas vezes que ler jornais, ou ver TV, se tornou num
constante exercício de, como um hinduísta diria, "transformação espiritual" ou,
como diria um "junky", numa "pedrada" permanente. O leitor sabe o que é um
"milhão de euros"?, e "mil milhões de euros"?, e "100 mil milhões de euros"? Eu
não faço a mínima ideia; "mil euros" ainda vou percebendo o que seja, "mil
milhões de euros" é só um som...
A evolução não preparou o pagante homem comum português (cujo salário mínimo,
quando tem salário, é inferior a 500 euros) para perceber o que sejam "186 mil
milhões de euros" (valor da dívida pública portuguesa em 2012, segundo a CE). A
coisa tem um lado positivo: podemos continuar tranquilos. Pelo menos até o
tsunami chegar. A Parque Escolar propôs-se requalificar 332 escolas por "940
milhões de euros" e acabou por requalificar 205 por "3,1 mil milhões"; a
Lusoponte meteu ao bolso indevidamente "4,4 milhões"; o Governo vendeu o BPN ao
BIC por "40 milhões" doando-lhe, ao mesmo tempo "600 milhões"; se o BCE
financiasse Portugal à mesma taxa de juro com que financia os bancos (1%),
pouparíamos "14,6 mil milhões"...
Quem se importa com isso?
(Publicado no Jornal de Notícias, 12 de março 2012)