Um congresso histórico
O recente congresso do sindicato do Ministério Público, realizado num hotel
de cinco estrelas de Vilamoura, no Algarve, mostra bem a degenerescência moral
que atingiu esta magistratura ou, pelo menos, a sua fação hegemónica. Para
realizar o sinédrio, os magistrados dirigentes sindicais não hesitaram em pedir
dinheiro a várias empresas, incluindo bancos outrora indiciados de envolvimento
em atividades ilícitas. Com efeito, o congresso contou com o «alto patrocínio»
do Banco Espírito Santo e do Montepio, dois bancos envolvidos na célebre
«Operação Furacão» - o primeiro diretamente e o segundo porque comprou um banco
envolvido, o Finibanco. Além disso, o congresso teve também o «alto patrocínio»
da companhia de seguros Império Bonança, bem como o patrocínio oficial da Caixa
Geral de Depósitos e da Coimbra Editora e ainda o patrocínio do BPI e dos Cafés
Delta, entre outros.
Os procuradores sindicalistas reuniram assim um vasto conjunto de apoios
financeiros que lhes permitiram não só realizar o congresso mas sobretudo
oferecer um luxuoso programa social para acompanhantes e congressistas que
incluiu um cruzeiro pela costa algarvia, almoços e jantares em hotéis de cinco
estrelas, passeios diversos e provas de produtos regionais e, por fim, dar as
sobras dessa abastança a uma instituição privada sem fins lucrativos como é a
Fundação António Aleixo. Eles não hesitaram em pedir dinheiro a entidades
suspeitas de crimes económicos graves para agradar aos convidados entre os quais
diretores de órgãos de informação que permanentemente violam o segredo de
justiça. Como é possível pedir dinheiro para pagar um programa social
principesco, manifestamente fora do alcance económico dos seus organizadores,
concebido para aliciar colegas e convidados a participarem no evento?
A propósito destes patrocínios, Vital Moreira interrogava, recentemente, no
seu blogue «Causa Nossa»: «Não restará nestes sindicalistas judiciais um mínimo
de sentido deontológico sobre a incompatibilidade entre a sua função e o
financiamento alheio dos seus eventos sindicais? Não se deram conta de que se
amanhã um dos seus generosos financiadores deixar de ser investigado ou acusado
de alguma infração penal que lhe seja assacada, tal pode lançar a dúvida sobre a
sua isenção»?
Com que cara é que magistrados do MP vão pedir dinheiro a um banco envolvido
na «Operação Furacão» e ainda suspeito de corromper políticos no caso do abate
de sobreiros da Herdade da Vargem, em Benavente, e indiciado por ter feito
desaparecer nas suas filiais internacionais o rasto de cerca de 30 milhões de
euros, alegadamente pagos como comissões pela compra, pelo Estado português, de
dois submarinos a um consórcio alemão?
Diz o artigo 373º n.oº 2 do Código Penal que comete o crime de corrupção
passiva para ato lícito quem «por si, ou por interposta pessoa, com o seu
consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro,
sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que
perante ele tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do
exercício das suas funções públicas». Será que esta norma só não se aplica a
magistrados? Será que nenhum dos patrocinadores teve no passado alguma pretensão
dependente do exercício das funções dos magistrados do MP? Claro que sim. E
houve até situações, no âmbito da «Operação Furacão», em que o procurador
titular do processo defendeu teses mais favoráveis aos arguidos do que a do
próprio juiz de instrução.
Sublinhe-se que o MP perseguiu criminalmente alguns médicos a quem acusou de
terem solicitado e aceite patrocínios da indústria farmacêutica, alguns deles
para poderem participar em congressos. Então os magistrados do MP podem fazer o
mesmo sem quaisquer consequências?
Seja como for, os procuradores que estiveram no congresso, no mínimo, não
deverão no futuro intervir em processos em que sejam partes quaisquer das
empresas patrocinadoras do evento, pois tal constituirá «motivo, sério e grave,
adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade», nos termos dos
artigos 43º n.oº 1 e 4 e 54, n.oº 1 do Código de Processo Penal.
Não há dúvidas de que este congresso vai ficar na história.
(Publicado no Jornal de Notícias em 12 de março de 2012)