«Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato.
Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie.
Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários. Um pouco lambeiro talvez perante as coisas belas, e um quase nada céptico perante as coisas consagradas; achando a quase todos os deuses pés de barro, ventre de jibóia a quase todos os homens, e a quase todos os tribunais, portas travessas.
Amigo de fazer jongleries com a primeirra bola de papel que alguém lhe atire, ou seja um poema, ou seja um tratado, ou seja um código.
Paciente em aguardar, manso e pagado, com um ar de mistério, horas e horas, a surtida de um rato pelos interstícios de um tapume, e pelando-se, uma vez caçada a presa, por fazer da agonia dela uma distracção; ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinhas de veludo; ora fingindo que lhe concede a liberdade, atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a, até a deixar num picado ou num frangalho.
Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato – isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia – porque não escolheremos nós o travesti do último? É o que se quadra mais no nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.
Razão porque nos acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca.”
- Fialho de Almeida, Prefácio de «Os Gatos», 1857 - 1911.