«Um Portugal velho e rotineiro de senhores e servos, está bem vivo e presente.
De mão vazia, ninguém pedisse justiça, pão, educação e saúde.
Parasitas do povo, o administrador, o corrupto, o banqueiro e o autarca, em nome do saber, da competência, da lei e da bem-aventurada vontade dos que mandam e exigem todas as formas de preito, a começar pela mais concreta: o óbolo dos usos e frutos sejam da terra ou do trabalho.
Crédulo e submisso como há mil anos, o camponês gemia mas esvaziava a salgadeira, a talha e o curral.
Cair no desagrado de tais divindades, seria a perdição total, neste mundo ou no outro.
O Diário do Governo e o Boletim Diocesano não nomeariam funcionários públicos e pastores de ovelhas.
Proclamavam omnipotências.
E, ai daquele que se recusasse a reconhecer-lhes a soberania!
Do pé para a mão acordava com um círculo de maldição à volta.»
Adaptações de «A criação do mundo - 3.º dia, de Miguel Torga.»