Uma crónica de Cristina Andrade, retirada daqui mas que merece ser lida com muita atenção.
Uma Braga que vemos disseminada pelo País.
Uma memória que querem que se apague.
Só que há gente que não cala, e muito menos esquece ontem, como hoje; não bajulam nem vergam perante tiranos e déspotas; que nunca untam as mãos com o metal peçonhento, cobrado à custa de sangue, suor e lágrimas de milhões.
«Quando votei pela primeira vez, Mesquita Machado já era presidente da Câmara de Braga há dezanove anos. Na altura, prometi a mim mesma que votaria sempre em Braga até que a Câmara mudasse de mãos. Treze anos depois, continuo a votar em Braga!
Morei no centro de Braga, a dois passos do Seminário, brincava num jardim que tinha a estátua do Pio XII e, a cinco minutos a pé, havia cinco igrejas. Estudei numa escola primária pública mas que se situava num lar gerido por freiras. No ano passado, voltei lá; o crucifixo continua na parede e a escola continua a ser pública.
Ao longo de 31 anos, assisti ao aparecimento de uma cidade feita de pontes e túneis labirínticos, de parques de estacionamento subterrâneos, de ruas transformadas em vias rápidas, de vivendas em banda e prédios inseridos num ordenamento urbanístico incompreensível, tudo construído por um punhado de empreiteiros que enriqueceram sob a protecção de Mesquita Machado.
Volto à minha cidade com frequência e surpreendo-me várias vezes. Esta semana, fiquei estarrecida ao constatar que Mesquita Machado decidiu reavivar a ideia de presentear a memória do cónego Melo com uma estátua.
Suspeito de ter estado envolvido no assassinato do Padre Max, que sempre recusou, o cónego Melo esteve ligado aos movimentos de extrema-direita que organizaram atentados bombistas contra militantes de esquerda, no pós-25 de Abril.
Falecido em 2008, o cónego Melo foi presidente da Confraria de Nossa Senhora do Sameiro, da Irmandade de São Bento da Porta Aberta e do Conselho Geral do Sporting de Braga, clube desportivo do qual Mesquita Machado faz também parte.
Em declarações proferidas no dia 11 de Fevereiro, Mesquita Machado considera o Cónego Melo "um grande bracarense" e afirma que o Largo de Monte d'Arcos "tem muita dignidade" para poder albergar a estátua de oito metros e três toneladas que está pronta há anos, aguardando colocação.
Ora, eu sou uma singela bracarense, para quem o largo em causa é conhecido como o ‘largo do cemitério' ou eventualmente, o ‘largo em frente ao D. Diogo', um colégio da arquidiocese de Braga, onde não entram crianças com trissomia 21 e onde alunos são expulsos por colocarem cartazes apelando à liberdade de expressão mas, na minha humilde condição, oponho-me totalmente a esta ou a qualquer outra ideia semelhante.
Como bracarense, recordo-me das polémicas que vão avivando a cidade, num casamento feliz entre igreja, estátuas e Câmara Municipal. Na minha primeira década de vida, surgiu a controvérsia em torno das três pirâmides colocadas na Avenida Central, evocando a visita de João Paulo II, que alguém adequadamente grafitou com as indicações ‘Quéops', ‘Quéfren' e ‘Miquerinos', lembrando os faraós das pirâmides de Gizé, no Egipto.
Na minha segunda década, foi a vez da estátua a D. João Peculiar que apresenta este arcebispo com um báculo fálico e flácido, que deu origem às mais divertidas conversas n'A Brasileira.
Agora, é a vez da estátua ao cónego Melo. Novamente. Quando achávamos que a questão já estava arrumada, eis que Mesquita Machado a faz surgir das brumas. Mas este assunto, ao contrário dos anteriores, não tem piada nenhuma. Porque não pode ter piada a perda de vidas humanas sob o explodir de bombas.»
Cristina Andrade, psicóloga