Carta
aos meus pais
Tivemos
muita sorte, manos. Agora somos orfãos e não tenho jeito para orfão. Eles
também não. E depois perdemos há pouco o Pedro que será sempre uma ferida
aberta para nós. E depois da morte do Pedro a nossa mãe informou que não tinha
o direito de estar viva com um filho morto.
Em
primeiro lugar quero dizer que estou farto de ser orfão, eu que, em criança,
tantas vezes desejei a vossa morte, durante umas horas, quando ralhavam comigo
ou não me deixavam fazer o que me apetecia e obrigavam-me a actos
desnecessários tais como lavar os dentes, comer sopa ou pegar nos talheres como
deve ser. A ordem
-
Pega nos talheres como deve ser
ainda
ecoa, horrível, dentro de mim, tal como a sinistra pergunta
-
Não lavaste as mãos antes de vir para a mesa?
ou
a resposta
-
Um dia falamos sobre isso
quando
calhava interessar-me pelo modo como as crianças apareciam dentro da barriga
das mães. Apesar de tudo eu tinha alguma cultura: sabia, claro, que os rapazes
faziam chichi pela pilinha, que as meninas por um buraquinho mas um dia vi uma
mulher de cócoras no pinhal em Nelas e fiquei banzo: fazia por uma escova.
Naturalmente interessei-me:
-
Porque é que as mulheres fazem por uma escova?
e
os meus pais primeiro banzos também e depois a lutarem para ficar sérios. Não
me explicaram nada e vários mistérios subsistiram durante muito tempo.
Primeiro, porque é que as mulheres têm uma escova ali. Segundo, porque é que as
escovas, que passei a olhar com desconfiança, fazem chichi. Terceiro, isto
acontecerá ao conjunto das meninas, ao crescerem, ou só àquela? Quarto, o exame
minucioso a que submeti todas as escovas que encontrei em casa não me deu
nenhum resultado esclarecedor: não havia uma que não estivesse seca. As de
escovar a roupa, as de escovar o cabelo, as de esfregar o chão. E os meus pais
sem responderem. A minha mãe ainda abriu a boca mas não chegou a falar,
embaraçadíssima. O meu pai não abriu a boca mas qualquer parte dele parecia
divertir-se às escondidas, quando qualquer parte dele parecia divertir-se às
escondidas a minha mãe a censurá-lo
-
João
e
ele logo sério, ausente, a interessar-se pelos meus estudos que, em geral, o
desgostavam porque os meus resultados escolares costumavam roçar o trágico e
constituíam uma preocupação constante para a família. O facto de eu ser
escritor
(sempre
fui escritor desde que me conheço e a minha mãe previa-me um futuro de miséria
negra)
não
desagradava inteiramente ao meu pai, que tinha um respeito sagrado pelos
artistas, mas os meus resultados escolares preocupavam-no, queria que eu
tivesse uma profissão sólida que me amparasse as veleidades criativas. Para
ele, a única profissão sólida e digna era ser médico
-
E depois, nos intervalos, escreves
como
Júlio Dinis ou Duhamel. Acabei por lhe fazer a vontade, pai, tornei-me médico,
mas o meu curso foi um tormento para ele: reprovações, notas baixíssimas, os
seus colegas, professores também, lá me iam deixando passar por amizade.
Lembro-me que no fim da prova de Medicina Operatória o catedrático me disse com
bonomia, diante do anfiteatro cheio:
-
Olha, filho, tens treze e diz lá ao pai que não pôde ser mais.
Isto
para além de cartas que ele me mostrava com desgosto, género
O
seu rapaz esteve aqui e não sabia nada
ou,
comparando-me com o meu irmão
-
O Lobo Antunes tem dois filhos, um é bom, o outro é uma nódoa.
Ainda
me espanta a razão pela qual o meu pai não me matou. Mas sei que lia às
escondidas o que eu escrevia e tinha muitas esperanças literárias no filho,
embora nunca me tivesse falado nisso, porque não era dado a confidências ou
elogios. A mim não me disse nada mas dizia aos meus irmãos
-
O António tem faísca, o António tem faísca
e
que, quando comecei a publicar, se orgulhava dos meus produtos. Eu acho que os
meus irmãos e eu tivemos muita sorte com os nossos pais, que eram pessoas de
uma honestidade irrepreensível, inteligentes, cultas, complexas, rigorosas, com
qualidades muito superiores aos defeitos que obviamente também possuíam.
Tivemos muita sorte, manos. Agora somos orfãos e não tenho jeito para orfão.
Eles também não. E depois perdemos há pouco o Pedro que será sempre uma ferida
aberta para nós. E depois da morte do Pedro a nossa mãe informou que não tinha
o direito de estar viva com um filho morto. E morreu de puro desgosto, sem
doença. Somos orfãos do Pedro também. Sobramos cinco e eu não quero que nenhum deles
morra antes de mim. Gostamos uns dos outros sem palavras, com o imenso pudor
que herdámos dos nossos pais. Não suporto a ideia da morte do João, do Miguel,
do Nuno, do Manuel, como continuo a não suportar a ideia da morte do Pedro. Vou
dizer uma coisa. Não devia dizer mas vou dizer. Quando fomos contar à nossa mãe
que o Pedro se tinha ido embora ela pronunciou só uma frase:
-
Tenham misericórdia de mim.
Sentada
na sua cadeira, na sua sala:
-
Tenham misericórdia de mim.
Agora
está com o nosso pai, a contar, entre muitos outros episódios
-
Lembras-te daquela história da escova?
e
o meu pai a responder
-
Ah
que,
no seu caso, às vezes, era um discurso muito comprido. Esta crónica saiu toda
descosida e mal feita. Não importa, de que outra forma podia fazê-la? É a minha
maneira aselha de pedir que tenham misericórdia de mim, porque não sou o adulto
que pensam. Peguem-me ao colo. Às vezes tenho tão poucos anos nos meus anos
todos e fico tão leve nessas alturas.
António Lobo Antunes, Crónica publicada na VISÃO 1150, de
19 de Março