Infelizmente,
a democracia portuguesa padece há anos de uma cada vez maior anemia cívica.
As
mais diversas situações são sempre discutidas no âmbito da peixeirada
político-partidária e nunca por submissão a liminares princípios de ética e
deontologia.
Vem isto a propósito da recusa de Cavaco Silva em prestar
esclarecimentos aos deputados da comissão de inquérito que investiga a implosão
do BES, e, por essa via, aos portugueses em geral.
Não vou aqui deter-me sobre
os diversos argumentos técnicos e constitucionais já usados para justificar o
direito de Cavaco Silva a não prestar quaisquer declarações sobre o assunto.
Também não vou aqui contra-atacar os argumentos daqueles que afirmam que tal
proposta da oposição se insere apenas no contexto da chicana política.
Sobre
esses argumentos prefiro abster-me de mais escólios, que mais não seja pelo
respeito que ainda desejo continuar a manter pela manca democracia a que esse
tipo de raciocínio nos vem conduzindo. De facto, pela razão, há que ter dó.
A
verdade é que Cavaco Silva comprou um dia produtos do BPN por um preço muito
baixo e vendeu muito bem esses títulos, mesmo antes do banco entrar em
dificuldades e de ter sido nacionalizado pelo Estado com graves prejuízos para
os contribuintes. Pode ter sido coincidência. Mas também é um facto que Cavaco
Silva recebeu o senhor Salgado, o qual lhe terá revelado a situação difícil do
banco. E é incontestável que Cavaco Silva, secundarizando ostensivamente a
posição do Banco de Portugal, fez declarações públicas visando reforçar a
confiança no BES, pouco antes da queda estrondosa do banco. Começam a ser
coincidências a mais.
A
pretensa superioridade moral de Cavaco Silva, assente em declarações pífias e
infelizes do tipo “Teriam de nascer duas vezes para serem mais sérios do que
eu”, faz-me sempre lembrar a imbatível honestidade de Salazar, o tal que nunca
foi corrompido e que morreu com apenas 28 contos na conta, apesar de ter criado
um sistema que permitiu às corporações financeiras e industriais nascidas à sua
sombra que roubassem e engordassem como muito bem quisessem até ao dia 25 de
abril de 1974.
A
direita mais bolorenta, à falta de melhores argumentos para ter de ceder ao
princípio de que numa República situações excecionais como a do BES obrigam a
comportamentos éticos excecionais, agarra-se a esta pretensa seriedade de
Cavaco Silva como um náufrago se agarraria à última tábua do mundo. Mas convém
não esquecermos que houve milhares de portugueses, todos eles pequenos
investidores, que ou compraram ações do BES quando não deviam ou não as
venderam quando podiam, apenas porque confiaram no quadro que lhes foi traçado
pelas declarações públicas do presidente.
O
facto de Cavaco se recusar a prestar explicações alegando a natureza reservada
das conversas havidas nas audiências que concedeu, ou a sua confessada falta de
memória para tudo o que terá sido dito, não ajuda nada. Por um lado, ninguém
acredita em falhas de memória quando estamos a falar de um problema com tantos
zeros. Por outro, não fica nada bem a Cavaco Silva vir invocar as prerrogativas
do secretismo funcional da presidência quando, no contexto de uma situação como
aquela que todos conhecemos, esse secretismo foi há muito violado pelo próprio
Ricardo Salgado, através dos prolíferos pronunciamentos públicos que sobre as
conversas efetuou.
Cada
vez se torna mais claro que todos, mas mesmo todos, desde Cavaco ao governo,
mentiram, e muito, acerca do BES. Mentiram sobre a real situação do Banco,
mentiram quanto ao modo como decidiram intervir, mentiram quanto à decisão e ao
tempo da intervenção, mentiram ainda quanto às mensagens veiculadas para
benefício de uns e prejuízo de outros. E mentiram sobretudo acerca dos
custos finais para o contribuinte, como se há-de ver um dia. E se por qualquer
absurdo do destino algum deles não mentiu, é como se o tivesse feito, porque
não nos consegue convencer do contrário. É que, em política, o que parece é.
Coisa que Cavaco, com alguns perdigotos à mistura, passou a vida a dizer aos
outros!...
Muito
bom dia para todos.
(Crónica
na Rádio F - 9 de Fevereiro de 2015)