Ao contrário do adágio
popular segundo o qual “todos os dias é Natal”, o executivo camarário da Guarda
não olha para o Natal como um dia qualquer. Senão vejamos:
Em Portugal já existia uma
coisa chamada “aldeia Natal”. Trata-se da aldeia de Cabeça, no concelho de
Seia, que este ano se promove como aldeia Natal 2014. A ideia foi prosseguida
pelos habitantes da aldeia e consistiu numa proposta para vestir de Natal este
aglomerado de montanha, com todos os trabalhos de decoração e enfeites a serem
produzidos pelos próprios. Os materiais utilizados provém da região e a
cor é dada pela lã da serra da Estrela, cedida por diversas empresas têxteis da
região. O sucesso foi tal que o n.º de visitantes à aldeia já ultrapassou os 15
mil e o n.º de entradas na página divulgadora do evento já ultrapassava ontem
as 61 mil.
Em paralelo aconteceu a “vila
Natal”, assumida por Óbidos, dentro de um espírito comparável e com semelhantes
e assinaláveis níveis de sucesso.
Como não poderia deixar
de ser, Álvaro Amaro, com um sentido de oportunidade inversamente proporcional
à originalidade que o caracteriza, não resistiu a batizar de imediato a nossa
cidade de “cidade Natal”. Ou seja, está finalmente completo o círculo do karma
que há-de puxar o nosso astral para o céu. Tínhamos uma aldeia, tínhamos uma
vila e agora, graças à criatividade de Álvaro Amaro, até vamos ter uma cidade.
É caso para se dizer que, finalmente, já podemos morrer realizados!
O problema é que,
enquanto morremos e não morremos, este país corre o risco, devido ao
incontrolável ímpeto festivo do nosso brilhante autarca, de vir a ser
confundido com uma árvore de Natal ornamentada com artefactos comprados numa
qualquer loja chinesa da esquina. Amaro, qual senhor feudal do condado, vai
promover um programa natalício que incluirá muita animação, luz e cor. Tudo com
os altos patrocínios da China agora capitalista. De acordo com o nosso excelso
presidente, o evento surge no seguimento da aposta do ano anterior na iniciativa
"Guarda, Ar de Natal". Ou seja, depois da inventona do ar
engarrafado, que como todos sabemos produziu tantos efeitos positivos na nossa
vida que eles nunca mais acabam de suceder, chegou, para nossa incontida
felicidade, a cidade Natal. Para fazer jus à coisa, o lema será "A Guarda -
o ponto mais alto de Natal". A cerejinha no cimo do bolo consiste em
propostas como a do enfeitamento das janelas com motivos da quadra festiva por
parte dos munícipes, um lanche social que não se sabe se incluirá chá e
canasta, e uma iniciativa para uma cantoria de janeiras à própria autarquia!
A esta altura do
campeonato, confesso-vos que já estou meio confuso com tanta minudência propagandística.
Se calhar é mas é tudo inveja minha por não ser eu o autor das brilhantes ideias
a materializar por Álvaro Amaro. Mais, sinto-me tão confuso que até já me
revejo na pele daquele ladrão da história do Bocage. Ainda se lembram dela? Então
eu conto.
Bocage, ao chegar a casa
um certo dia, ouviu um barulho estranho no quintal. Chegando lá, constatou que
um ladrão tentava levar os seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do
indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com os seus amados patos, em
vez de lhe assentar meia dúzia de arrochadas, disse-lhe, imbuído de tolerância
e paciência:
-Oh, bucéfalo anácrono!
Não te interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato
vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus
ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo... mas
se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado,
dar-te-ei com a minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei
com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina
nada.
E o ladrão, confuso,
disse: Oh! Doutor, afinal levo ou deixo os patos?
Como a prosápia de Álvaro
Amaro não chega, nem por sombras, aos calcanhares de um Bocage, nem eu costumo
comer pato roubado pelo Natal, limito-me a desejar, aqui e a todos, uma boa
semana…
(Crónica na rádio F - 1 de Dezembro de 2014)