O ano que agora termina é a prova
acabada de que Marx tinha toda a razão quando afirmava que a história se repete.
A primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Senão vejamos:
Este ano, como nos filmes,
tivemos a beatificação de um papa, a abdicação de um rei e a morte de uma
rainha. Até aqui, nada de anormal.
Mas pelo meio, no contexto de uma
guerra que só chamou a atenção do ocidente quando teve mesmo de ser, fomos
confrontados com o ressurgimento de novas formas de fanatismo islâmico, com
degola de inocentes à mistura; só então nos interessámos pelas perseguições às
minorias cristãs e promovemos novas cruzadas contra os mouros.
Em nome da globalização, incrementámos
o tráfico de escravos e permitimos que a grande ceifeira da economia mundial
continue a matar de fome e de miséria. O ocidente só reagiu ao Ébola quando o
mesmo ameaçou entrar-lhe fronteiras adentro e destruir os fundamentos financeiros
que são hoje a sacrossanta religião do mundo civilizado. Quanto às péssimas
condições económicas e higiénicas de povos tantas vezes tratados como
inferiores e distantes, as quais estiveram na origem da dita cuja epidemia,
continua tudo na mesma. Até à próxima crise…
Os novos senhores feudais do mundo
proliferam no contexto de uma finança cada vez mais desumanizada. A moeda
cunhada, enviada para as feitorias dos tempos modernos, as chamadas offshores, fica a salvo de quaisquer tributações
e penhoras e serve para acrescentar poder ao poder. Em nome do pecúlio de uns
poucos, trabalha-se assim cada vez mais por cada vez menos dinheiro. Pode
dizer-se que o trabalho escravo voltou. Atiram-se trabalhadores para o
desemprego com o argumento do interesse público, que se sabe ser afinal privado
e de uns poucos. À pala de tudo isto, os servos pagam a corveia e banalidades
que atingem valores insuportáveis.
Os direitos deixaram de ser
adquiridos e passaram a ser aqueles que os senhores do mundo quiserem que
sejam. A proteção social deixou de ser solidária e foi substituída pelo
assistencialismo e pela caridadezinha das ordens religiosas, pagas com os
dízimos de todos nós. É o regresso, em força, dos asilos, da sopa dos pobres, e
de coisas parecidas.
A saúde reduz-se à gestão de
jardins de pedra e à contabilização dos gastos com os doentes. A educação resume-se
cada vez mais, face aos campeonatos entre instituições, a um saber escolástico,
formatado e entregue às ordens, sejam elas maçónicas ou religiosas. Mas sempre
mercantilistas. Ao povo, esse, basta saber ler, escrever e contar. Um pouco!
As cortes reúnem para proclamar e
conceder hossanas à realeza. O Santo Ofício voltou e determina que se atirem à
fogueira os que ousam dizer NÃO. Procurar emprego é terrorismo. O nepotismo
instalou-se. Emigrar é uma fatalidade, decretam constantemente os cronistas do
reino.
A verdadeira informação morreu. A
investigação jornalística, quase sempre controlada e comandada por interesses superiores,
desculpa consciências e libera mentiras. O show
do jornalismo de esgoto invadiu tudo. Os poucos que ousam resistir a este lamentável
estado de coisas, são mortos, perseguidos ou ameaçados, consoante o país em que
vivam.
Finalmente, para coroar esta
triste decadência coletiva, a república, que já era das bananas, virou agora monarquia
de pacotilha. O presidente é cada vez mais um rei que não sabe o lugar que
ocupa. Ou uma rainha como a de Inglaterrra, o que é coisa ainda pior. Limita-se
a respeitar os interesses dos senhores feudais e do clero. Num assomo de
cobardia quase inigualável, remete-se ao silêncio sempre que não era preciso.
Em contrapartida faz saber, pelos arautos reais, que a paz e o progresso no
reino tudo justificam. O povo, esse, é cada vez mais súbdito e menos cidadão. A
soberania nacional vende-se a preço de saldo, um pouco por todo o lado. Em
suma, o bem-estar dos cidadãos depende cada vez mais dos outros e cada vez
menos de si. Por isso, a subserviência é a regra. Bem-vindos à barbárie da nova
Idade Média. Até pró ano, que há mais!
(Crónica na Rádio F - dia 29 de Dezembro de 2014)