Miguel Guedes*
Escreve
mais alto, Dylan!
"Something
is happening here and you don"t know what is" - "Ballad of a
thin man", Bob Dylan.
Recordarei
para sempre a alegria quando anunciaram Bob Dylan como Prémio Nobel da
Literatura. Tocado pelo regular fio das notícias, o sorriso abriu e ficou. É
estranho e comovente como sabemos intuitivamente que nunca esqueceremos alguns
momentos, como sabemos pela força dos detalhes o que atinge profundamente.
"Tenho uma notícia tocante para vos dar e desta vez não é sobre o
fim", disse aos amigos com que partilhava a mesa. Sei onde estava aquando
da morte de Kobain, Buckley ou Bowie e lembrar-me-ei sempre onde estava quando
me apeteceu, à distância da ilha de Santiago e invadido pela maravilhosa morna,
resgatar todos os meus discos de Dylan e assaltar o sistema de som do
restaurante. "Fantástico...", enquanto examinava meio incrédulo o meu
ecrã de mão. Génio andarilho, património mundial da terra prometida para o
Mundo, poeta trovador de paradeiro incerto quando nenhum sueco o consegue
contactar para saber se irá ou não à atribuição do prémio. "Não estou
preocupada, penso que ele vai aparecer. Se não quiser vir, não virá. Será uma
grande festa na mesma", assegura Sara Danius, da Academia sueca. É assim
mesmo, centelha nas vinhas da ira, cimento da adolescência e da dúvida até ao
fim da vida. Já não me aproximava tanto dos suecos desde os filmes de Ingmar
Bergman.
Algumas
reacções literárias ao Nobel fazem parte de um romance de faca e alguidar
barato regado com presunção numa saladinha mista de alcova e azia. Heresia,
absurdo, sacrilégio, chegou o Nobel dos fanhosos. As canções não têm nada a ver
com literatura (como se não fossem palavras escritas); o homem nem canta
(afinal, a música é para aqui chamada); o perigoso precedente que se abre
(quando arriscado era continuar a fingir que não há poesia nas canções); há
escritores que mereciam mais (como continuam sem perceber que não há medalhas
para todos os heróis?). Tolstói nunca ganhou o Nobel mas, ao que parece, nunca
poderia ganhar se o musicassem. Digam, pelo menos, como Lobo Antunes: "Eu
gosto".
Escritor
de canções parece ser subespécie. Dylan estará muito feliz, rindo
convulsivamente da reacção típica dos guardiões do templo. A oposição ao
progresso é algo que conhece bem. Em 66, num concerto em Manchester, alguém na
audiência chamou-lhe "Judas!" por ter abandonado a acústica acústica
e pegar na eléctrica. "És um mentiroso", respondeu Dylan, ordenando à
sua banda para tocar "ainda mais alto" a versão mais assombrada que
já ouvi de "Like a rolling stone". "Algo está a acontecer aqui e
tu não sabes o que é", escrevia ironicamente em "Highway 61,
revisited". Pela forma como alguns escritores reagiram ao Nobel, há
demasiada gente sem perceber que pode escrever menos em 30 anos do que em três
minutos e meio. Tantas vezes, a vida em síntese.
*MÚSICO
E ADVOGADO
O
autor escreve segundo a antiga ortografia