quarta-feira, outubro 19, 2016

Gostei de ler

 
Miguel Guedes*

Escreve mais alto, Dylan!

"Something is happening here and you don"t know what is" - "Ballad of a thin man", Bob Dylan.

Recordarei para sempre a alegria quando anunciaram Bob Dylan como Prémio Nobel da Literatura. Tocado pelo regular fio das notícias, o sorriso abriu e ficou. É estranho e comovente como sabemos intuitivamente que nunca esqueceremos alguns momentos, como sabemos pela força dos detalhes o que atinge profundamente. "Tenho uma notícia tocante para vos dar e desta vez não é sobre o fim", disse aos amigos com que partilhava a mesa. Sei onde estava aquando da morte de Kobain, Buckley ou Bowie e lembrar-me-ei sempre onde estava quando me apeteceu, à distância da ilha de Santiago e invadido pela maravilhosa morna, resgatar todos os meus discos de Dylan e assaltar o sistema de som do restaurante. "Fantástico...", enquanto examinava meio incrédulo o meu ecrã de mão. Génio andarilho, património mundial da terra prometida para o Mundo, poeta trovador de paradeiro incerto quando nenhum sueco o consegue contactar para saber se irá ou não à atribuição do prémio. "Não estou preocupada, penso que ele vai aparecer. Se não quiser vir, não virá. Será uma grande festa na mesma", assegura Sara Danius, da Academia sueca. É assim mesmo, centelha nas vinhas da ira, cimento da adolescência e da dúvida até ao fim da vida. Já não me aproximava tanto dos suecos desde os filmes de Ingmar Bergman.

Algumas reacções literárias ao Nobel fazem parte de um romance de faca e alguidar barato regado com presunção numa saladinha mista de alcova e azia. Heresia, absurdo, sacrilégio, chegou o Nobel dos fanhosos. As canções não têm nada a ver com literatura (como se não fossem palavras escritas); o homem nem canta (afinal, a música é para aqui chamada); o perigoso precedente que se abre (quando arriscado era continuar a fingir que não há poesia nas canções); há escritores que mereciam mais (como continuam sem perceber que não há medalhas para todos os heróis?). Tolstói nunca ganhou o Nobel mas, ao que parece, nunca poderia ganhar se o musicassem. Digam, pelo menos, como Lobo Antunes: "Eu gosto".

Escritor de canções parece ser subespécie. Dylan estará muito feliz, rindo convulsivamente da reacção típica dos guardiões do templo. A oposição ao progresso é algo que conhece bem. Em 66, num concerto em Manchester, alguém na audiência chamou-lhe "Judas!" por ter abandonado a acústica acústica e pegar na eléctrica. "És um mentiroso", respondeu Dylan, ordenando à sua banda para tocar "ainda mais alto" a versão mais assombrada que já ouvi de "Like a rolling stone". "Algo está a acontecer aqui e tu não sabes o que é", escrevia ironicamente em "Highway 61, revisited". Pela forma como alguns escritores reagiram ao Nobel, há demasiada gente sem perceber que pode escrever menos em 30 anos do que em três minutos e meio. Tantas vezes, a vida em síntese.

*MÚSICO E ADVOGADO

O autor escreve segundo a antiga ortografia