A austeridade das esquerdas
João Gonçalves *
O
primeiro-ministro, quando está mais "apertado", começa
invariavelmente as respostas por um mal pronunciado "vamos lá a ver".
E "pegou" o vício ao Orçamento para 2017. É natural. Um orçamento -
do Estado, das compras para a casa ou de uma obra de construção civil - é uma
previsão de despesas e de receitas. No caso do Estado é, também ou sobretudo,
um documento político. Um governo, o de Mota Pinto em 1979, viu a sua proposta
orçamental rejeitada pelo Parlamento e caiu a seguir. Na derradeira
legislatura, para não irmos mais longe, foram vários os pedidos de aferição da
constitucionalidade de algumas normas orçamentais. E outros tantos foram os
rectificativos por causa das decisões do Tribunal Constitucional ou apesar
delas. Nenhum presidente vetou qualquer orçamento mas também nenhum, até agora,
se privou de suscitar questões de constitucionalidade, ou outras, junto de quem
de direito. O próprio dr. Centeno encarregou-se de cobrir o seu documento de
política ao declará-lo "de Esquerda", uma inovação
"doutrinal" em matéria de Finanças Públicas e Direito Financeiro. O
Relatório do Orçamento, aliás, menciona a "estabilidade política"
decorrente de uma maioria parlamentar explícita, que o orienta e justifica, o
que decerto agradará a Bruxelas. O "visto" europeu não depende de
"ideologias". É-lhe indiferente se os orçamentos são de
"Esquerda" ou de "Direita" desde que a execução orçamental
cumpra os limites do défice. É por isso que, entre manobras de ilusionismo
orçamental, este Orçamento prolonga a austeridade (Jerónimo chama
eufemisticamente "limitações" à austeridade e Catarina descreve-a
hipocritamente com "um Orçamento do PS"), não dá garantias à economia
e instabiliza fortemente o sistema fiscal com um "modelo" agravado de
tributação indirecta que mais parece copiado daquilo que Costa fazia na Câmara
de Lisboa: taxas e taxinhas a nível nacional. É um Orçamento instável,
clientelista (por exemplo, dos 445 milhões de euros para Cultura, 0,1 % do PIB,
236 são para a RTP, o que só por si equivale a 84% da rubrica do total das
"reposições" horárias e de "cortes" na Função Pública),
tacticista e cheio de vasos comunicantes em forte risco de entupimento na
execução. É, afinal, o "vamos lá a ver" em números. A Direita, porém,
deve levar a sério mais a afirmação da "estabilidade política" que os
números. Embora não saibamos o que tem para troca. Porque esta
"estabilidade", com mais ou menos austeridade, veio para ficar. Custe
o que custar.
*
JURISTA
O
autor escreve segundo a antiga ortografia