sexta-feira, outubro 21, 2016

Crónica


A Verdade, a Mentira, a Fé e os Pókemons

Há muitas formas de se olhar para a verdade e a mentira. Para Picasso, sem mentira não havia arte, já que a mesma não passava de uma mentira que nos permitia conhecer a verdade. De forma bem mais utilitária, Onassis achava que não se ser descoberto numa mentira era o mesmo que se dizer a verdade. Para Oscar Wilde havia simplesmente que viver no meio das duas. Pouca sinceridade era uma coisa perigosa, e muita sinceridade era absolutamente fatal. Para mim, verdade e mentira convivem com a fé. Eu explico.

Deu à estampa mais um escândalo envolvendo a ULS da Guarda, a propósito de um inédito raide noturno ao serviço de urgência, para determinar se havia médicos que lá deveriam estar a trabalhar e não estavam. Como foi a única vez que algo parecido algum dia aconteceu em Portugal, a Guarda ganhou uma espécie de Nobel da parvoeira e logo nasceram umas 20 mil teorias da conspiração acerca do que se passou. Como ninguém se entende acerca dos acontecimentos e eu não quero fazer parte da boateira que se instalou por aí, desejo vincar publicamente a minha fé sobre o sucedido.

Não acredito que seja verdade que havia mesmo um médico que há mais de um ano costuma ir dormir a casa quando deveria estar na urgência. Nem que imensa gente sabia do vício há muito. Nem que esse médico é assessor da direção clínica. E que por isso mesmo o diretor clínico não foi previamente informado do raide. Nem acredito que o diretor clínico se tenha sentido enxovalhado por tal manifesta desconsideração e que tenha colocado o seu cargo à disposição. E que o médico, para justificar não ter sido encontrado por ninguém na noite do raide, tenha inventado a desculpa de que ficou sem bateria no telemóvel. E que o diretor clínico tenha sido instruído a retirar a demissão.

Também não acredito que tenha sido criada, de há uns meses a esta parte, na escala da urgência do serviço de cirurgia, uma posição especial para a existência de um terceiro cirurgião de serviço, quando desde sempre foram só dois ou até menos. E que isto tenha sido feito para que a Ordem dos Médicos volte a atribuir ao serviço a idoneidade para formar internos (os novos critérios assim o exigem). Nem que, devido ao número de doentes que cada vez mais fogem da Guarda devido à má qualidade da assistência médica, já reconhecida até pela própria Ordem dos Médicos, esse terceiro cirurgião, pago com o dinheiro de todos nós, seja ali tão necessário como gelo no frigorífico de um esquimó. Nem acredito que por isso mesmo, por não ser preciso para coisa nenhuma, o tal médico pudesse dar-se ao luxo de dormir fora do hospital, mas como se estivesse lá dentro.

Também não acredito que tenha sido uma médica do mesmo serviço, cujos conflitos com o médico passeador são notórios, a denunciar em estilo “bufo” tal situação. Nem acredito que Carlos Rodrigues, o presidente da administração, tenha autorizado o raide para fragilizar o diretor clínico e que acreditasse que conseguia manter tudo em família. Nem acredito que quando promete mais raides do género, porque os considera a forma normal e rotineira de fiscalizar a assiduidade dos funcionários, não esteja no seu perfeito juízo e a desrespeitar as chefias intermédias por si nomeadas.

Nem acredito que quando a coisa deu a bronca que se viu, Carlos Rodrigues tenha recebido instruções para recuar e abafar tudo e inventado a teoria de que estava tudo bem e que os médicos são afinal uma classe exemplarmente cumpridora. E que a promessa que fez de mais raides é tão disparatada como a insistência de Sísifo em empurrar repetidamente uma pedra pela montanha acima. Muito menos acredito que Álvaro Amaro tenha trazido Carlos Rodrigues para a Guarda sobretudo para arranjar uns empregositos para os amigos, ali na ULS, porque a Câmara já rebentava pelas costuras. Nem que Álvaro Amaro olhe furioso para tudo isto, perguntando a si próprio que mal é que fez a Deus.

Também não acredito que aquele hospital se tenha transformado numa espécie de manicómio. No que eu acredito mesmo, para que conste, é em gambuzinos… Ou, para ser mais moderno, em pókemons. Quer vocês creiam, quer não.
 
(Crónica no jornal O Interior - 11 de Outubro de 2016)