Viver
é fazer meia com uma intenção dos outros.
Mas,
ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear
nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico
reverso.
Croché
das coisas... Intervalo... Nada...
Pobres-diabos
sempre com fome — ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com
fome das sobremesas da vida.
Quem
os ouve, e os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os
instrutores de Shakespeare.
Irrita-me
a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes.
A
sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para
uma sensibilidade verdadeira.
Mas,
como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes
tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente a de um homem com
dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna —
a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os
deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles
(ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
Por
isto, contudo, amo-os a todos.
Meus
queridos vegetais!
"O
gajo estava tão grosso que nem via a escada".
Ergo
a cabeça. Este rapazote, ao menos descreve. E esta gente quando descreve é
melhor do que quando sente, porque por descrever esquece-se de si.
Passa-me
a náusea.
Vejo
o gajo.
Vejo-o
fotograficamente.
Até
o calão inocente me anima.
Bendito
ar que me dá na fronte — o gajo tão grosso que nem via que era de degraus a
escada — talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e
atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão.
A
intriga, a maledicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o
contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente [?] da
própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a
horrorosa ignorância da inimportância do que são...
Tudo
isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no
involuntário dos sonhos, das côdeas húmidas dos desejos, dos restos trincados
das sensações.
Agir,
eis a inteligência verdadeira.
Serei
o que quiser.
Mas
tenho que querer o que for.
O
êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito.
Condições
de palácio tem, qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não ficarem
ali?
-
Livro do desassossego, Fernando Pessoa