Assim
que ocorreu a “indicação” do primeiro-ministro e, logo de seguida, dos
respetivos colaboradores, assistiu-se em Portugal a algo que julguei nunca ser
possível: apelidarem-se alguns dos governantes de ciganos, cegos, negros e
monhés. Assim mesmo, sem espinhas!
Ora,
olhando para a nossa história plurirracial e multicultural, imbuída decerto de
muitos excessos mas de igual número de tolerâncias, há-de haver uma razão para
isto ter acontecido. Para se tentar perceber que razão é essa, convém dissecar
o universo mental em que certa direita mergulhou após o – para ela – inesperado
resultado das eleições de 4 de outubro.
Para
início de conversa temos de recordar que o primeiro-ministro de Portugal foi,
pela primeira vez na história, “indicado” e não “indigitado”. Cavaco Silva
pretendeu assim demarcar-se simbolicamente da legitimidade associada ao
processo democrático, aliás na prossecução de uma tese algo tergiversante prosseguida
por Passos Coelho e Paulo Portas, segundo a qual houve uma espécie de golpe de estado
que retirou o poder a quem o merecia. Cavaco “indicou” António Costa pela
simples razão de que não lhe apetecia “indigitá-lo”. Mas como teve mesmo de
ser, o ato ganhou outro nome, não fosse o Deus da “pátria e família” achar que
tudo não passara de mais uma banal etapa da nossa sempre conturbada existência,
o que é sempre perigoso.
Em
segundo lugar, o discurso da ilegitimidade do novo governo passou da fase do
berro e da trauliteirice mais rasca à fase do “medo daquilo que aí vem”. De
facto, o berro transformou-se naquilo que deixou de ser útil. Se eu quiser
insultar alguém, chamo-lhe um nome feio aos berros. Mas só durante uns minutos.
Se a coisa durar tempo de mais, há uma altura em que já ninguém me ouve. Nessa
altura a única preocupação das pessoas passa a ser conseguirem não me ouvir. Aí
sou obrigado a mudar para uma estratégia em que as pessoas apreendam
subconscientemente a mensagem que quero que oiçam: os governantes que aí vêm
ainda são piores do que nós…
Por
último, quando se percebe que pior não pode haver, só há uma solução: passar à
terapia de choque! Acusar alguém de ser baixinho ou demasiado alto, magro ou
demasiado gordo, velho ou demasiado novo, suscita sempre reações emotivas e
distrai as pessoas do essencial.
Recordam-se
das vítimas da violência doméstica? Há sempre uma coisa que as une: é o facto
de, na perspetiva do agressor, serem culpadas de alguma coisa. Que coisa é,
isso já não interessa. Mas lá que são culpadas, isso são!
Aqui
é mais ou menos o mesmo. A vítima, ao contrário da direita que levou uma carga
de pancada no dia 4 de outubro, não é o governo de Passos e Portas. É o povo
que votou numa maioria de esquerda. Então, qual é o problema? É que desta vez o
agressor não pode bater na vítima. Como é que se dá uma carga de pancada a 3 ou
4 milhões de eleitores? Sobretudo quando eles, ainda por cima, só fizeram
aquilo que a direita os motivou para fazerem? A melhor solução, numa altura
dessas, é mesmo a de nos fazermos a nós próprios de vítimas. Ou seja, o
agressor vai à polícia queixar-se de que a mulher, contra toda a tradição de 40
anos, em vez de se comportar placidamente enquanto enfarda uma carga de pancada,
lhe partiu um prato na cabeça e logo se seguida, enquanto ele recuperava
aturdido, lhe esvaziou a sopa a ferver pelas fuças abaixo!
Claro
que os nossos governantes não atiram pratos à cabeça de Passos e de Portas. E
muito menos lhe desafeitaram as fuças com a sopa da pedra. Mas há uma coisa que
ninguém pode negar: há entre eles pretos, cegos, ciganos, monhés e outras aberrações
do género. O que, dada a falta de melhores argumentos, sempre há-de servir para
alguma coisa.
É
que, se o preconceito é a pior de todas as deficiências, o racismo é o último
recurso de quem perdeu a razão. E quem perdeu a razão é sempre capaz de perder
também a dignidade. Ou qualquer outra coisa que porventura ainda tenha consigo.
Por exemplo, a vergonha.
Muito bom dia para todos.
(Crónica Rádio F - 7 de Dezembro de 2015)