quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Ponto de vista

O país assistiu, este fim-de-semana, à maior operação de propaganda política dos últimos anos. Chamaram-lhe congresso do PSD, mas a mim pareceu-me mais uma rave party misturada com FantasPorto.
Para o PSD, Portugal está bem, só os portugueses é que não. O problema é que esta dissociação patológica nos coloca a todos em rota de colisão com uma realidade que só existe na cabeça de quem nos governa.
O PSD conseguiu, à custa de um mar de banalidades e muita alucinogénese, fugir ao assunto das medidas que estão para vir. Não se assistiu a um debate de ideias novas ou salvadoras, até porque não as há. Assistiu-se, isso sim, e sobretudo, à sublimação, ainda que por vezes indireta, dos fantasmas que povoam a consciência de quem se quer manter no poder a qualquer custo. E um deles, que dá pelo nome de Miguel Relvas, até foi ressuscitado, pese embora um certo sabor a vomitado que isso provocou em muito boa gente.
A realidade não é, infelizmente, a deste circo. Um estudo recente realizado pela Eurosondagem revelou que 62% dos portugueses acredita que a austeridade está a "afundar o país económica e socialmente". 64% antecipam que essa austeridade "vai continuar por uns anos". O mais grave é que 49% são da opinião que não existem "propostas políticas credíveis" que possam indicar um caminho alternativo. Afundar, empobrecer, ver o país a autodestruir-se, será, portanto, a opção mais credível aos olhos da grande maioria da população, na qual as poucas centenas de militantes do PSD que participaram no congresso pesam pouco mais do que zero.
Quer isto dizer que o discurso oficial da inevitabilidade está a vencer a batalha das perceções. A esquerda não está a conseguir articular um projeto alternativo e convincente. E é cada vez mais improvável que o faça. Por mais que a ideia desagrade, a política é cada vez mais um enorme espectáculo direccionado para uma plateia pouco politizada e com um enorme défice de atenção. E contra factos nem os melhores argumentos.
Chegámos ao ponto em que um primeiro-ministro de Portugal não se coíbe de dizer, taxativamente, que os portugueses são tratados à paulada. E ameaça logo de seguida, dizendo que se a primeira paulada é forte, as outras serão bem piores. A paulada é de tal ordem que Portugal é hoje o país europeu onde mais riqueza está nas mãos dos 10% mais ricos. Muito à custa de os custos unitários do trabalho terem caído, entre o primeiro trimestre de 2010 e o terceiro trimestre de 2013, 5%. O trabalho ficou mais barato, mas não foi o país quem lucrou, foi um bando de ricos.
Nessa linha, o Governo prepara-se para tornar definitivos, ainda este ano, os cortes salariais na Administração Pública que anteriormente vendeu como temporários. O efeito de arrastamento sobre os salários do sector privado verifica-se sempre logo a seguir. Isto vai ao encontro da Comissão Europeia, que defende um queda adicional de outros 5% nos salários, umas vezes, e uma desvalorização dos salários ao ritmo atual durante pelo menos 10 anos, outras. Venha o diabo e escolha!
Somem-se a isto os cortes nas pensões de sobrevivência que estão a ser preparados para depois das eleições europeias, o desemprego real que não cessa de aumentar e a emigração forçada que bate recordes sucessivos. E muitas outras coisas que aqui não tenho tempo de enumerar.
O facto de ninguém tocar a sério nas rendas dos sectores energético e das infraestruturas de transportes [leia-se auto-estradas]” torna tudo pior. É a prova de que afinal há quem seja totalmente imune a pauladas. Assiste-se mesmo a uma reconfiguração social que origina rendas através da privatização de serviços públicos, mesmo os que dão lucro. É caso para se dizer que quem devia levar as pauladas é afinal quem as dá.
Isto, e muito mais, não foi discutido no congresso do PSD. Mas devia. Porque a fé, quando levada ao exagero, como foi o caso, troca sempre o alívio imediato por um maior mal no futuro. E isso não é política, é fanatismo!

Tenham um muito bom dia. E já agora uma semana sem pauladas.
(Crónica na rádio F no dia 24 de Fevereiro de 2014)