sábado, fevereiro 08, 2014

Ponto de vista

Como é hábito, a comunicação social atirou-se, nas últimas semanas, ao tema que convém, ou seja, àquele que dá mais audiências. Passou-se do 8 ao 80. Agora só se fala de praxe. Sem se ir à raiz do problema.
Os mais incautos poderiam pensar que a universidade está intrinsecamente ligada a um conjunto de valores que os séculos sedimentaram para lá de qualquer hesitação: a produção da ciência, a cultura do conhecimento, o criticismo, a dúvida metódica, o convívio com os clássicos, a aquisição da memória histórica e cultural, a invenção de conceitos e teorias e o contacto com estratégias de leitura ou de interpretação desconstrutiva de preconceitos, de lugares-comuns, de ideologias e de valores dominantes. Em suma, todo o contrário de uma cultura da repetição servil, da obediência cabisbaixa, da acefalia.
Ora, o que constatamos na atitude de boa parte dos universitários – e aqui tanto faz que sejam públicos ou privados – é uma desatenção e uma indiferença descontraída em relação a todos os valores que acabei de enumerar. O que transportam e preservam ao longo de todo o seu percurso académico, são sobretudo uma ludicidade e superficialidade permanentes, mais ou menos infantis ou adolescentes, que a tudo resistem e que se mantêm blindadas à mais leve insinuação de seriedade, de densidade ou de profundidade, mesmo depois da universidade.
É para muitos alunos a extensão do que se passa no ensino básico e secundário. Nada que os agentes educativos desses graus de ensino não tenham verificado e denunciado há muito tempo, no meio de toda a desautorização de que foram e, continuam a ser vítimas.
Neste contexto torna-se difícil aos nossos universitários perceberem a diferença entre ritual medieval e integração em sociedade. Para eles o lúdico associa-se a um fenómeno que, entre nós, se acentuou nas últimas décadas, e que é o consumismo juvenil mais ou menos desbragado, que os adultos rendidos à infantilização dominante têm alimentado conforme podem. Este hedonismo doentio é altamente despolitizado e explica que alguns estudantes universitários pretendam continuar a viver num eterno jardim infantil. Por isso não espanta a completa ausência de postura crítica, por parte desses jovens, face à austeridade vigente. A malta quer é praxes, sexo e bebedeiras, e, sobretudo, pensar muito pouco ou nada, pois os trabalhos finais das cadeiras, que se resolvem com umas consultas wikipédicas e uns plágios cibernáuticos, expatriam o ato de ler para o universo de uma intensa repressão.
Hoje é o tempo dos turbo-diplomados, estilo Relvas ou Sócrates, e de certas “jotas” que, defendendo que qualquer direito é referendável, apostam na “liberdade” de não haver “ensino obrigatório” ou consideram que a Constituição da República e a Declaração Universal dos Direitos Humanos são extravagâncias que se opõem à liberdade austera reclamada pelos “mercados.
Outro aspecto que nenhuma narrativa tem focado, tem a ver com o comércio subjacente às praxes. Tudo é transaccionado nessa balburdia medieval em que se convertem os ditos rituais, desde a quotização nas respetivas associações, aos artistas de variedades de duvidosa qualidade, passando pelo fogo-de-artifício e pelos trajes e outros ornamentos para sacar euros aos novatos. E, claro, pelas negociatas com as cervejeiras.
O resultado final é um bando de conformistas, ineptos e acríticos culturais e sociais. Como diria o famosíssimo Barão de Itararé, “em todas as famílias há sempre um imbecil. É horrível, portanto, a situação do filho único”. Sobretudo se for estudante e gostar de praxes, acrescentaria eu.

Tenham um bom dia e já agora com a semana que for possível.

(Crónica na rádio F - dia 3 de Fevereiro de 2014)