Maquiavel, na sua obra “Discursos de Tito Lívio”,
avisava que «a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma
vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar
dela». Esta constatação acerca do lado negro da natureza humana causa-me
sempre calafrios e faz-me suspeitar, agora que se fala tanto nos
quadros de Miró, que estamos a tratar de muito mais que os 36 milhões de
euros que o governo esperava obter com a sua venda.
Não vou aqui alongar-me sobre os pormenores da
trapalhada, sobre a qual já quase tudo foi dito. Claro que o governo
descaiu para a alarvice, à moda daqueles campónios que, de esfomeados
que andam, açambarcam comida em casamentos. Claro que violou todas as
leis que encontrou pelo caminho, exportando os quadros como se de um
qualquer negócio de narcotráfico se tratasse. Claro que tem uma agenda
ideológica contra a cultura, ou antes, contra qualquer cultura que não
seja a sua.
Isto percebe-se muito bem da parte de quem acha
que cultura e mercados são mais ou menos a mesma coisa. De quem nunca
considerou a possibilidade da manutenção desta obra em Portugal poder
representar, a prazo, uma mais-valia cultural e turística com um valor
muito superior aos malfadados 36 milhões de euros. De quem consentiu que
os quadros fossem embora sem nunca serem mostrados.
Atrevo-me a suspeitar que, se por qualquer
malabarismo da história, se descobrisse agora que o BPN tinha também
deitado a mão ao testamento de Cristo, à certidão de nascimento de D.
Afonso Henriques ou a uma carta de amor do infante D. Henrique, o
governo também vendia. E se fosse por mais de 36 milhões, ainda vendia
mais depressa!
Mas o PS não tem razões para sorrir. Pode até ter
tido o mérito de ter encravado, com a iniciativa de alguns dos seus
deputados, todo este processo. Mas a revelação de que, já no tempo de
Sócrates, se iniciou a venda da obra, revela apenas as cambalhotas a que
a política obriga. Podem agora Gabriela Canavilhas e Teixeira dos
Santos vir dar murros no peito, garantindo que nada sabiam. O problema é
que o PS só foi contra a saída dos quadros porque hoje é oposição. Se
fosse governo, faria exatamente a mesma coisa. Só não acreditam nisto os
totós e os militantes do partido.
Quando Passos Coelho, a propósito do assunto,
afirmou que precisamos de um chip de nova mentalidade, fiquei sem saber
se devia rir ou chorar. Até porque nem sei se é de comédia ou de
tragédia que falamos quando discutimos esta questão.
Mas lembrei-me logo que Miró, tendo escorado a
sua obra na força do surrealismo, foi também influenciado por outros
movimentos, como o cubismo, o fauvismo e o dadaísmo. E este último
reconheceu que o principal problema das manifestações artísticas era
almejar algo que é impossível, como por exemplo explicar o ser humano.
Quiçá, a pensar já em certos artistas da nossa praça…
É por isso que eu não sou capaz de explicar a
razão para Passos Coelho acreditar que ainda nos pode cantar a canção do
bandido. Quando o PS nacionalizou o BPN, deixando fugir os bens e
ativos da Sociedade Lusa de Negócios, não consta que o PSD tenha
manifestado descontentamento com tal solução. Por isso os 36 milhões de
euros não deviam vir da venda dos quadros. Deviam vir dos bolsos dos
amigos de Cavaco Silva que um dia deram um golpe bilionário num banco e
em todos nós!
«Mais importante do que a obra de arte
propriamente dita é o que ela vai gerar. A arte pode morrer, um quadro
desaparecer. O que conta é a semente».
Estas palavras foram proferidas por Joan Miró i
Ferrà, alguém que há cem anos enfrentou as forças anónimas da corrupção
política e social. E que confraternizou com objetores de consciência e
outras más companhias da época. Só por isso, nunca teria agradado a
Passos Coelho. Mas pelo menos não era tótó, nem sonhava com chips.
(artigo publicado no jornal O Interior em 13 de Fevereiro de 2014)