quarta-feira, dezembro 14, 2016

Ponto de Vista


«O Imperador logo de manhãzinha arrastava a figura de dinossauro e dava os bons dias a si mesmo diante dos espelhos.
Perguntava:
- Espelho, fiel espelho onde é que neste Reino houve alguém que desafiasse o tempo como eu?
- Jamais, senhor jamais. A vida regrada, o saber e a palavra tornam o homem imortal, respondiam os espelhos.»
Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires.

A Guarda, cidade, recebeu a visita de Marcelo, o presidente. Que inaugurou um centro logístico especializado em transportes e armazéns de frio, situado na Plataforma Logística da nossa cidade, discursou depois no encerramento da “Guarda, uma Plataforma Ferroviária” e finalmente visitou a nossa baladíssima «cidade Natal».

A visita de Marcelo insere-se, segundo nos foi dito, numa iniciativa designada por «Portugal Próximo». Qualquer coisa como as presidências abertas de Mário Soares ou os roteiros de Cavaco. Cada presidente escolhe pelos vistos o nome que mais lhe agrada para recrear a já estafada «corte na aldeia»! A verdade é que consequências práticas de tais eventos, nenhumas.

Estas iniciativas aparecem cada vez mais como uma forma politicamente apetitosa de os políticos fazerem prova de vida. É a técnica deles para tomarem banho! Banho de multidão, entenda-se.
Pelo meio, ensaboam-nos com expressões do género «criar oportunidades para ir mais longe», «maior igualdade entre os portugueses, mas com esperança», «ouvir os dramas, as alegrias, as ilusões e as desilusões de todos», e coisas assim.

Marcelo foi mesmo ao ponto de afirmar que “O meu dever é estar aqui. É verdade que é um dever que eu cumpro com prazer. Não sou daqueles responsáveis políticos que cumprem a sua missão com ar de penosidade, como se tivessem em cima dos ombros o peso do mundo”. Não nos explicou se estava a referir-se às visitas semelhantes dos seus antecessores ou apenas a comentar a postura de outros políticos de campeonatos menores.
Mas em compensação ficámos a saber que Marcelo, mesmo quando há dias difíceis e pesados, não perde tempo com lamentos e que – passo a citar - há “muitas portuguesas e portugueses com imensas dificuldades nas suas vidas”.

A profundidade desta constatação deixou-me mais atordoado do que naquela vez em que cometi o erro de passar por trás da burra da tia Aurora e levei um valente coice na parte esquerda do peito.

Pena que Marcelo não faça visitas não anunciadas ou programadas aos poucos idosos que ainda se arrastam pelas ruelas das aldeias e que comeram toda a vida o pão que o diabo amassou. Ou aos lares aonde tantas vezes são depositados a peso de ouro. Ou às terras abandonadas e que daqui uns anos já ninguém saberá a quem pertencem.

A dissociação entre o país real e o discurso dos políticos cresce na razão direta da sua incapacidade em apreender o abismo social que se aproxima. Desde as inacessibilidades ao despovoamento, desde o encerramento de serviços da administração central à emigração dos mais qualificados, o interior é cada vez mais um deserto no meio de um oásis de fantasia.
Os políticos não compreendem que isto já não vai lá com discursos. As pessoas, ou já não os ouvem, ou quando ouvem não acreditam. E mesmo que alguns acreditem, isso não altera nada. Era precisa uma rutura total dos paradigmas subjacentes à administração do território e das valências do Estado. E isso dificilmente vai acontecer.
Por isso vamos continuar a ter políticos a dizer o óbvio e a compor a figura antes de mais um banho de multidão. É mesmo para isso que servem os espelhos.

E é assim que se fazem os dinossauros. Dinossauros políticos, entenda-se. E excelentíssimos, de preferência.

Tenham um bom dia.

(Crónica na Rádio F - 12 de Dezembro de 2016)