quinta-feira, dezembro 29, 2016

Ponto de vista



O filósofo Immanuel Kant afirmou um dia, a propósito da condição humana, que: “somos um lenho torto do qual não se podem tirar tábuas rectas”. Por outras palavras, há em nós uma força que nos incita ao desvio e essa força é a corrupção. Ela não é fatal. Pode ser controlada e superada, caso contrário seguirá a sua tendência. Se não for, obtemos o mundo em que vivemos. As elites tratam a coisa pública como se fosse sua e organizam o Estado com estruturas e leis para servirem os seus interesses, desprezando egoisticamente o bem comum.
Recordo que o capitalismo tem na sua lógica a corrupção, aceite socialmente. Impõe a dominação do capital sobre o trabalho, criando riqueza com a exploração do trabalhador e com a devastação da natureza. Gera desigualdades sociais que, eticamente, são injustiças, o que origina permanentes conflitos de classe. Por isso, o capitalismo é por natureza antidemocrático, pois a democracia supõe uma igualdade básica dos cidadãos e direitos garantidos, aqui violados pela cultura capitalista. Se tomarmos tais valores como critérios, devemos dizer que nossa democracia é anémica e se situa muito próxima da farsa. Querendo ser representativa, na verdade, representa sobretudo os interesses das elites dominantes e não os gerais da nação. Isso significa que não temos um Estado de direito consolidado e muito menos um Estado de bem-estar social. Esta situação configura uma corrupção já estruturada e faz com que ações corruptas campeiem livre e impunemente. Como regra geral podemos dizer que  quanto mais desigual e injusto é um Estado e ainda por cima centralizado e burocratizado, maior é o caldo cultural que permite e tolera a corrupção.
Para quem ache que esta crónica se transformou num simples manifesto, lembro-vos aqui um exemplo emblemático e recente. Christine Lagarde, directora-geral do FMI, foi julgada em França pelo seu papel num cambalacho que resultou no pagamento de 400 milhões de euros do Estado francês ao empresário Bernard Tapie, em 2008. Foi considerada culpada de negligência em todo esse processo, tendo vindo à tona um conjunto de perigosas ligações e promiscuidades com políticos como Nicolas Sarkozy, o qual por sua vez mantinha uma relação de amizade com Tapie.
 O mais extraordinário é ter sido divulgada uma carta manuscrita de Christine Lagarde a Sarkozy que rezava nos termos que passo a citar: “Utiliza-me como te convier e como convier ao teu projecto. Se me utilizares, necessito de ti como guia e do teu apoio: sem a tua condução poderia ser ineficaz, sem o teu apoio seria pouco credível. Com imensa admiração, Christine Lagard”. Fim de citação.
Esta carta diz tudo sobre o mundo em que vivem os políticos que nos governam e é uma janela aberta para a forma como entendem as relações e o usufruto do poder.
Christine Lagarde arriscava até um ano de prisão e 15 mil euros de multa. O tribunal considerou como atenuantes, pasme-se, a sua “personalidade" e "reputação internacional", bem como a batalha que na altura dos acontecimentos travava contra a "crise financeira internacional".
Lagarde, que foi nomeada para o FMI em 2011, conseguiu assim escapar à justiça, através de uma original sentença que a considerou culpada mas que se recusou a atribuir-lhe uma pena.
Para compor o ramalhete, os estatutos do FMI muito convenientemente não preveem uma demissão automática em caso de condenação do seu director-geral, com ou sem cumprimento de pena.
Naturalmente que qualquer semelhança entre este caso e tantos outros que se desenrolam neste jardim à beira-mar plantado não acontece por acaso. De facto as leis, em França ou no resto do mundo, são feitas sempre, mas sempre, em favor das elites dominantes. Ou como dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a Justiça é como as serpentes, só morde os descalços. Mesmo em vésperas de Natal.
Tenham todos uma boa semana.

(Crónica Rádio F – 26 deb Dezembro 2016)