O filósofo Immanuel Kant afirmou
um dia, a propósito da condição humana, que: “somos um lenho torto do qual não
se podem tirar tábuas rectas”. Por outras palavras, há em nós uma força que nos
incita ao desvio e essa força é a corrupção. Ela não é fatal. Pode ser
controlada e superada, caso contrário seguirá a sua tendência. Se não for,
obtemos o mundo em que vivemos. As elites tratam a coisa pública como se fosse sua
e organizam o Estado com estruturas e leis para servirem os seus interesses,
desprezando egoisticamente o bem comum.
Recordo que o capitalismo
tem na sua lógica a corrupção, aceite socialmente. Impõe a dominação do capital
sobre o trabalho, criando riqueza com a exploração do trabalhador e com a
devastação da natureza. Gera desigualdades sociais que, eticamente, são
injustiças, o que origina permanentes conflitos de classe. Por isso, o
capitalismo é por natureza antidemocrático, pois a democracia supõe uma
igualdade básica dos cidadãos e direitos garantidos, aqui violados pela cultura
capitalista. Se tomarmos tais valores como critérios, devemos dizer que nossa
democracia é anémica e se situa muito próxima da farsa. Querendo ser
representativa, na verdade, representa sobretudo os interesses das elites
dominantes e não os gerais da nação. Isso significa que não temos um Estado de
direito consolidado e muito menos um Estado de bem-estar social. Esta situação
configura uma corrupção já estruturada e faz com que ações corruptas campeiem
livre e impunemente. Como regra geral podemos dizer que quanto mais
desigual e injusto é um Estado e ainda por cima centralizado e burocratizado, maior
é o caldo cultural que permite e tolera a corrupção.
Para quem ache que esta
crónica se transformou num simples manifesto, lembro-vos aqui um exemplo
emblemático e recente. Christine Lagarde, directora-geral do FMI, foi julgada em
França pelo seu papel num cambalacho que resultou no pagamento de 400
milhões de euros do Estado francês ao empresário Bernard Tapie, em 2008. Foi
considerada culpada de negligência em todo esse processo, tendo vindo à tona um
conjunto de perigosas ligações e promiscuidades com políticos como Nicolas Sarkozy,
o qual por sua vez mantinha uma relação de amizade com Tapie.
O mais extraordinário é ter sido divulgada uma
carta manuscrita de Christine Lagarde a Sarkozy que rezava nos termos que passo
a citar: “Utiliza-me como te convier e como convier ao teu projecto. Se me
utilizares, necessito de ti como guia e do teu apoio: sem a tua condução
poderia ser ineficaz, sem o teu apoio seria pouco credível. Com imensa
admiração, Christine Lagard”. Fim de citação.
Esta carta diz tudo sobre
o mundo em que vivem os políticos que nos governam e é uma janela aberta para a
forma como entendem as relações e o usufruto do poder.
Christine Lagarde arriscava
até um ano de prisão e 15 mil euros de multa. O tribunal considerou como
atenuantes, pasme-se, a sua “personalidade" e "reputação
internacional", bem como a batalha que na altura dos acontecimentos travava
contra a "crise financeira internacional".
Lagarde, que foi nomeada
para o FMI em 2011, conseguiu assim escapar à justiça, através de uma original sentença
que a considerou culpada mas que se recusou a atribuir-lhe uma pena.
Para compor o ramalhete,
os estatutos do FMI muito convenientemente não preveem uma demissão automática
em caso de condenação do seu director-geral, com ou sem cumprimento de pena.
Naturalmente que qualquer
semelhança entre este caso e tantos outros que se desenrolam neste jardim à
beira-mar plantado não acontece por acaso. De facto as leis, em França ou no
resto do mundo, são feitas sempre, mas sempre, em favor das elites dominantes. Ou
como dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a Justiça é como as serpentes,
só morde os descalços. Mesmo em vésperas de Natal.
Tenham todos uma boa
semana.
(Crónica Rádio F – 26 deb
Dezembro 2016)