A recente vitória de Donald
Trump nas eleições norte-americanas não tem apenas impacto na vida dos seus
concidadãos. Pela natureza do cargo, por estar em causa a maior potência
militar do mundo, e por outras inúmeras razões que aqui não vou elencar, esta
vitória não deixará de ter implicações na vida dos restantes habitantes do
planeta. Quer isto dizer que não há forma de ignoramos o assunto, como aliás se
demonstra à saciedade através de um simples passeio pelos debates acalorados
que incendeiam as redes sociais.
O filósofo Immanuel Kant,
autor da célebre obra «Crítica da razão pura», foi o criador de um primeiro sistema
interpretativo do período moderno. Tomou para o efeito em consideração o
impacto nas nossas vidas da Revolução Científica e do Iluminismo. Depois dele
muita coisa mudou e do iluminismo revolucionário e progressista de Kant passou-se
àquilo que é hoje denominado de populismo.
O populismo é um conceito
difuso e algo viscoso que, pelas suas características e adaptabilidade, pode
estender-se a qualquer campo de análise, nomeadamente à vida política.
Tradicionalmente designa uma ideologia caracterizada por uma hostilidade às
elites e por uma alegada devoção ao povo. Segundo essa ideologia o que define
as elites é - para além dos seus privilégios - o seu egoísmo, carácter corrupto
e desprezo pela pessoa comum. Para o populismo, às pessoas associa-se uma natureza
virtuosa inquestionável, em contraponto ao seu estatuto de vítimas dessas
elites.
O populismo tradicional,
para mais fácil adaptação às suas próprias necessidades, foi sempre caracterizado
pela rejeição da divisão entre esquerda e direita e pela desconfiança do
pluralismo político. Assenta na fé num líder capaz de incorporar-se às pessoas
e de expressar os seus desejos. Todas estas características que descrevi são
típicas do fascismo, independentemente de não serem as únicas nem exclusivas
dele.
Por essa razão estes
populismos sempre foram encarados com desconfiança por parte da esquerda
democrática. Nos últimos anos, no entanto, incrivelmente, talvez por
pragmatismo ou até desespero, alguns pensadores de esquerda também o têm
reivindicado. Basta olharmos para o caso da Venezuela.
O populismo é uma
ideologia oca, sem conteúdo, mas é exatamente aí que reside a sua principal
virtude, uma vez que ele é capaz de acomodar toda a frustração e raiva dos
oprimidos contra as insuficiências das instituições democráticas, incapazes de
responder às questões sociais que dilaceram a vida das pessoas comuns.
É aí que reside o erro, inconsistência,
ou hipocrisia da coisa. A pergunta a fazer é: “como é que sabemos que o
populismo é bom”? De facto, não há bom ou mau populismo! Há apenas populismo!
O problema de tudo isto é
que a democracia, pensada há mais de 2 mil anos e posteriormente catapultada
para a História moderna pelo Iluminismo de Kant e de muitos outros, é
intrinsecamente incompatível com o populismo, pese embora estar ritualmente cada
vez mais associada a ele.
O escritor judeu Elie
Wisel, sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald
e vencedor do prémio Nobel da paz de 1986, afirmou um dia, numa altura em que
os populismos já haviam criado vítimas suficientes para ser impossível
desprezar a sua existência histórica, que esquecer os mortos seria o mesmo que
matá-los uma segunda vez.
Não quero com isto dizer
que Donald Trump é um assassino ou que virá a sê-lo. Mas é inegável que se
comporta como um fascista anti-islâmico, usou o racismo para chegar ao poder,
propôs deportações em massa, defendeu documentos de identificação específicos
para muçulmanos, prometeu tornar a América novamente grande e culpa mexicanos,
muçulmanos e outras minorias pelos problemas que afligem o país.
Onde se lê “muçulmano” ”leia-se
“judeu” e teremos comprado um bilhete lá para os idos de 1933. Tal como então,
já não é só a democracia que está em causa. Arriscamo-nos a ser todos nós…
Muito bom dia para todos.
(Crónica na Rádio F - 14 de Novembro de 2016)