terça-feira, maio 12, 2015

Ponto de vista


O Governo anunciou há algum tempo que iria aumentar em cerca de 10 mil o n.º de vagas nos lares da terceira idade. Mas desengane-se quem julgou que isso equivaleria a um aumento de novos lares. Nada disso. A solução passa por alterar administrativamente, de 60 para 120, o número de vagas para residentes em cada instituição, nomeadamente através da duplicação do n.º de pessoas por quarto. Isso mesmo, mais camas por divisão!
Embora se diga que o povo tem a memória curta, eu ainda me lembro do tempo em que o CDS, em campanha eleitoral, se apresentava como a voz dos idosos. Era o partido dos reformados. No Governo, tudo mudou. O CDS passou a ser o partido que apoia o congelamento de pensões de reforma e o corte nos subsídios de férias e de Natal aos pensionistas.
Os empreendedores do sector ficar-lhe-ão eternamente gratos pela duplicação do valor com que o Estado e os reformados remuneram cada centímetro quadrado das suas explorações. Agora a União das Misericórdias Portuguesas, a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e a União das Mutualidades Portuguesas obtiveram do Governo licença para aumentarem o valor cobrado aos idosos que recorram aos lares da chamada “rede solidária”. A partir de agora podem exigir-lhes uma percentagem maior da pensão de reforma que recebam e essa percentagem passa a incidir também sobre outros rendimentos.
O Governo que confisca pensões de reforma diz que não pode aumentar o valor da comparticipação estatal por utente. Os empresários do sector alegam que o utente de hoje é muito menos autónomo do que o utente de há 20 anos, o que faz aumentar custos com pessoal. Pessoal esse, note-se, que maioritariamente não aufere mais do que um salário mínimo ou próximo disso. Os empresários alegam ainda que a progressiva maior dependência dos idosos faz aumentar custos com infraestruturas, as quais, mercê do acordo anterior podem no entanto ser agora mais reduzidas.
A “solidariedade” é, assim, um negócio cada vez mais lucrativo. E naturalmente mais caro para quem a ele recorre. Por isso, não é de estranhar que tivesse aumentado o número de idosos a viverem isolados e sozinhos em Portugal. Quantos conseguem pagar a exorbitância das mensalidades, agora aumentadas, mesmo nos lares ditos solidários?
Podem depois fazer-se campanhas de televisão a mostrarem soldados da GNR a patrulhar e a aconselhar os idosos que vivem sozinhos e isolados. O problema não se resolve com campanhas dessas. Não passam de formas propagandísticas de mascarar o problema. O que os idosos gostariam mesmo é de terem um lar onde conviver, de serem bem alimentados e de terem cuidados médicos compatíveis com um resto de vida com dignidade.
Isto é o mínimo que uma sociedade solidária deve fazer por respeito para quem já não pode manter uma vida ativa e produtiva ou que se encontra, tantas vezes, totalmente dependente de terceiros.
Infelizmente, em Portugal continuam a existir idosos sem telefone ou corrente elétrica e com condições muito degradadas de habitabilidade. A este cenário vem juntar-se a desagregação do SNS, com o encerramento de extensões de saúde no meio rural e uma cada vez maior dificuldade no acesso a cuidados hospitalares especializados. Se somarmos a isto a desagregação das famílias por força do desemprego e da emigração forçada, bem como a quebra de rendimentos, compreendemos como uma campanha porta-a-porta da GNR não passa de uma aspirina para tentar curar um cancro.
O problema já não é os idosos serem tratados desta maneira. O problema reside no facto de este tratamento por abandono alastrar cada vez mais a outras responsabilidades do Estado. Como dizia Victor Hugo, em “Os Miseráveis”, a miséria de uma criança interessa a uma mãe, a miséria de um rapaz interessa a uma rapariga, a miséria de um velho não interessa a ninguém. Ou seja, Portugal não é um país para velhos.
Tenham um bom dia.
 
(Crónica na Rádio F - Ponto de Vista - 11 de Maio de 2015)