segunda-feira, junho 16, 2014

As pulhices e outras ordinarices

A polémica em curso, acerca da recente decisão do Tribunal Constitucional, ficará para a história de Portugal, como um marco no caminho que o país tem vindo a calcorrear em direcção à democratura. Eu explico melhor.
Encontramo-nos perante o cenário de um jogo com dois contendores principais: de um lado o povo, do outro o governo. Existem naturalmente um árbitro, o presidente da República, e um conselho de disciplina, o Tribunal Constitucional. Dado o nível de violência verbal e social a que este jogo chegou, mais parece que é de boxe que falamos.
Confrontado com repetidos golpes e pontapés do governo no baixo-ventre do adversário, o árbitro do jogo – Cavaco Silva – entendeu ainda assim não remeter ao conselho de disciplina o orçamento de Estado para 2014, invocando na altura pareceres que não apontavam “para a inconstitucionalidade das normas orçamentais". Claro que não disse a ninguém que os autores desses pareceres são o mesmo tipo de pessoas que o governo acha que deviam escrutinar a “maior exigência na escolha dos juízes para o Tribunal Constitucional”…
Não surpreende ninguém que o conselho de disciplina tenha declarado que pontapés nas partes baixas, mordeduras nas orelhas, arranhadelas na cara e outros mimos do mesmo género não são actos admissíveis num jogo de boxe. Lamentavelmente, já não foi possível retirar ao povo as muitas nódoas negras, fracturas e luxações entretanto assim ilegalmente provocadas. O governo, esse, ficou apenas proibido de continuar a actuar desta forma antidesportiva, daqui para a frente.
O árbitro, que um dia teve o desplante de afirmar que “ainda está para nascer alguém mais honesto do que eu”, não quis pronunciar-se sobre a desautorização e verdadeiro enxovalho de que foi alvo por parte do conselho de disciplina. Mas o governo falou pelos dois. Não só acha que tem o direito de fazer tudo o que fez, como defende ainda o direito a levar matracas e pistolas para futuros jogos de boxe.
O argumento é, pasme-se, o de que, se o governo não ganhar o jogo, quem perde é afinal o povo! Pior, o governo defende até que deveria ter o direito a poder alterar as regras a qualquer momento do jogo, desde que tal fosse necessário para ganhar. Sempre a bem do oponente, claro. E defende que isso deveria ser aceite, não só pelo árbitro e pelo povo, como também pelo próprio conselho de disciplina!
Na altura em que o conselho de disciplina avaliava os pontapés do governo, o árbitro – que curiosamente agora não quer falar no assunto - entretinha-se a agitar o papão do aumento das taxas de juro para “níveis historicamente insuportáveis”. Agora que os pontapés foram considerados ilegais e as taxas de juro até desceram, percebe-se melhor a indisponibilidade do árbitro para falar do assunto.

Cavaco ainda não caiu de uma cadeira, nem o palanque caiu com o governo todo lá dentro, mas é pena. É que o que esta gente defende é um tipo de boxe em que o povo tem de saltar para o ringue com as mãos e os pés atados e com um capuz na cabeça. Acham que esse jogo só deve ter as regras que forem sendo convenientes. E não se escandalizam se o árbitro até ajudar a dar umas murraças no desgraçado do encapuzado. Só que o Zé, o do Bordalo Pinheiro, está farto de tanta pancada e, vai daí já lhes fez o manguito.

(Crónica no jornal O Interior - 10 de Junho 2014)