A polémica em curso, acerca da recente decisão do Tribunal
Constitucional, ficará para a história de Portugal, como um marco no caminho
que o país tem vindo a calcorrear em direcção à democratura. Eu explico melhor.
Encontramo-nos perante o cenário de um jogo com dois contendores
principais: de um lado o povo, do outro o governo. Existem naturalmente um
árbitro, o presidente da República, e um conselho de disciplina, o Tribunal
Constitucional. Dado o nível de violência verbal e social a que este jogo
chegou, mais parece que é de boxe que falamos.
Confrontado com repetidos golpes e pontapés do governo no baixo-ventre
do adversário, o árbitro do jogo – Cavaco Silva – entendeu ainda assim não
remeter ao conselho de disciplina o orçamento de Estado para 2014, invocando na
altura pareceres que não apontavam “para a inconstitucionalidade das normas
orçamentais". Claro que não disse a ninguém que os autores desses
pareceres são o mesmo tipo de pessoas que o governo acha que deviam escrutinar
a “maior exigência na escolha dos juízes para o Tribunal Constitucional”…
Não surpreende ninguém que o conselho de disciplina tenha
declarado que pontapés nas partes baixas, mordeduras nas orelhas, arranhadelas
na cara e outros mimos do mesmo género não são actos admissíveis num jogo de
boxe. Lamentavelmente, já não foi possível retirar ao povo as muitas nódoas
negras, fracturas e luxações entretanto assim ilegalmente provocadas. O governo,
esse, ficou apenas proibido de continuar a actuar desta forma antidesportiva,
daqui para a frente.
O árbitro, que um dia teve o desplante de afirmar que “ainda
está para nascer alguém mais honesto do que eu”, não quis pronunciar-se sobre a
desautorização e verdadeiro enxovalho de que foi alvo por parte do conselho de
disciplina. Mas o governo falou pelos dois. Não só acha que tem o direito de
fazer tudo o que fez, como defende ainda o direito a levar matracas e pistolas
para futuros jogos de boxe.
O argumento é, pasme-se, o de que, se o governo não ganhar o
jogo, quem perde é afinal o povo! Pior, o governo defende até que deveria ter o
direito a poder alterar as regras a qualquer momento do jogo, desde que tal
fosse necessário para ganhar. Sempre a bem do oponente, claro. E defende que
isso deveria ser aceite, não só pelo árbitro e pelo povo, como também pelo próprio
conselho de disciplina!
Na altura em que o conselho de disciplina avaliava os
pontapés do governo, o árbitro – que curiosamente agora não quer falar no
assunto - entretinha-se a agitar o papão do aumento das taxas de juro para
“níveis historicamente insuportáveis”. Agora que os pontapés foram considerados
ilegais e as taxas de juro até desceram, percebe-se melhor a indisponibilidade do
árbitro para falar do assunto.
Cavaco ainda não caiu de uma cadeira, nem o palanque caiu
com o governo todo lá dentro, mas é pena. É que o que esta gente defende é um tipo
de boxe em que o povo tem de saltar para o ringue com as mãos e os pés atados e
com um capuz na cabeça. Acham que esse jogo só deve ter as regras que forem
sendo convenientes. E não se escandalizam se o árbitro até ajudar a dar umas
murraças no desgraçado do encapuzado. Só que o Zé, o do Bordalo Pinheiro, está
farto de tanta pancada e, vai daí já lhes fez o manguito.
(Crónica no jornal O Interior - 10 de Junho 2014)