O Tribunal
Constitucional deu, finalmente, sinal de si. E pela terceira vez um orçamento de
estado do actual governo foi considerado inconstitucional, desta feita
relativamente a 3 das 4 normas em análise.
Já não me espanta que o
governo continue a querer governar à margem da Constituição e do Estado de
Direito. Espanta-me é que, numa orgia da confraria e do propósito, os seus
teólogos continuem a criticar o Tribunal Constitucional em busca de um bode
expiatório para o lançamento das chamadas “medidas compensatórias de
substituição”.
Desprezo profundamente
aqueles que têm da coerência em matéria constitucional e da defesa do Estado de
Direito uma visão instrumental, adequada aos seus interesses ocultos, os quais,
com grande veemência retórica, tentam fazer passar por convicções.
Entendo que um
presidente que jurou cumprir e fazer cumprir tal Constituição e um governo
formado a partir de eleições reguladas por ela, devem conformar-se ao texto
constitucional existente. Não concordando com o mesmo, é obrigação do governo abster-se
de o tentar violar sistematicamente. Aliás, se o governo não está satisfeito
com a Constituição que tem, está bem a tempo de se ir embora e de dar o lugar a
quem a respeite.
Todas as Constituições
têm uma data de nascimento e uma idade, todas resultam de um contexto político
e histórico particular, mas enquanto existem, respeitam-se. Se o governo tem um
projecto constitucional que considera melhor do aquele que se encontra em vigor,
deve submetê-lo ao órgão legislativo próprio para o efeito – o Parlamento
– e não passar a vida a fazer batota, tentando ultrapassar pela direita a
suprema lei do país.
O Tribunal
Constitucional apenas tem cumprido a sua obrigação de verificar se a
legislação ordinária cumpre os preceitos constitucionais. Diga-se que o tem
feito com muita simpatia para o governo, como aliás se verificou nesta última
deliberação, ao não mandar repor retroactivamente os roubos inconstitucionais
nos salários.
Quem não tem cumprido com
os seus deveres são os nossos governantes, a coberto de um presidente que até aceita
o exercício da censura na China durante a sua visita, pelo que não se estranha
que por cá interprete de forma peculiar a sua própria intervenção.
De facto, o governo tem
violado sobretudo os princípios mais universais de nossa constituição (igualdade,
proporcionalidade e equidade), razão para os sucessivos chumbos a que temos
assistido. E fá-lo porque detesta um documento que tem inscritos direitos
fundamentais derivados do constitucionalismo liberal desde a sacrossanta
Constituição Americana.
Na sofreguidão do poder
e dos interesses dos grandes grupos económicos, este governo, que é o mais anti
democrático desde o 25 de Abril, sonha na sua essência com uma Constituição que
lhe permita o desrespeito total pelas regras de um regime liberal, democrático
e com separação de poderes. Sonha com leis à medida e tribunais a gosto,
salários à chinesa, direitos sociais do século XVIII e uma comunicação social
dependente e subserviente. Sonha com o dia em que uma Constituição nem sequer
seja precisa para nada. Sonha, afinal, com uma democratura.
Uma burguesia cívica e
politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem
palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida
íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de
toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao
roubo (…). Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este, criado
de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação
unânime do País.
Estas palavras,
destinadas a descrever aqueles que dirigem os nossos destinos, não são minhas.
Foram proferidas por Guerra Junqueiro no ano da graça de 1896. E pelos vistos
perduram!
Muito bom dia a todos.
(Crónica na Rádio F - dia 2 de Junho de 2014)