quinta-feira, junho 12, 2014

Ponto de vista

A cidade da Guarda vai participar em mais um ato da tragédia que se abateu sobre o país. Diz-nos a história que desde a implantação da República e do posterior falhanço das medidas revolucionárias que se seguiram, há mais de 100 anos portanto, o país caiu na mais profunda das letargias sociais, económicas, políticas e culturais.
Os países têm, invariavelmente, ciclos destes. Só que em Portugal o ciclo parece nunca mais acabar. Vivemos uma época de continuidade das várias pobrezas. Pobreza de pensamento, de discernimento e de lucidez. Como disse um dia Miguel Torga, em Portugal as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coação, ou por devoção. Vem isto a propósito de, mais uma vez, ano após ano, a lista dos condecorados para o 10 de Junho se recriar com uma assustadora previsibilidade.
A presidência da República parece-se cada vez mais com uma sociedade amigável de palmadinhas nas costas. Ao colocar no mesmo patamar a carreira construída a pulso, com trabalho e empenho, com a carreira construída à sombra da sorte, do favor político e empresarial, da porta que se abriu em nome do apelido ou da origem da casta, a presidência da República desvaloriza a noção de serviço à comunidade e à causa pública em vez de prestar homenagem à cidadania de exceção.
A atribuição de medalhas a peito no Dia de Portugal parece-se cada vez mais com uma celebração barata e ordinária acompanhada de ofertas de brindes, recepções e espectáculos anódinos para o povo ignorante se entreter antes de se entregar aos tendões de Cristiano Ronaldo. Como se o momento mais importante para a exaltação de uma cidadania de excepção, talhada no rigor, na seriedade intelectual, na força do carácter, pudesse ser tão recorrentemente desvirtuado perante a complacência e vacuidade dos frequentadores de salões, o silêncio dos partidos políticos e dos seus dirigentes e a acomodação dos espíritos livres. Há honrosas excepções, claro. Pois há. E há aqueles que pela sua forma de ser e estar na vida, na vida coletiva, recusaram até tais medalhas. Mas são poucos.
Quando um dia a República voltar a ter um país e um povo que se identifique maioritariamente com os valores da comunidade solidária e da cidadania pura e dura, não sei o que será mais triste: se a lista dos homenageados ou a lista de quem os homenageou.
Nunca me esqueço de umas outras comemorações do 10 de Junho, em 1977, por causa do discurso de Jorge de Sena aqui na Guarda. O poeta advertiu então, com veemência, para os perigos que corria a democracia, caso desistíssemos de ser cidadãos. Esse discurso é hoje, cada vez mais, um documento impressionante, pela previsão crítica e pela luminosa lucidez. Como era hábito, as declarações de Jorge Sena fizeram então estremecer as cabecinhas bem-pensantes. Jorge Sena nunca foi pessoa de moer as palavras. Nunca fez conversa mole. Sempre disse o que achava que devia ser dito, fosse em que circunstâncias fossem, doesse a quem doesse.
O País padreca, de literatos menores, de cabisbaixos campeões da convivência, não perdoava a este homem livre e, ainda por cima, de alto coturno intelectual, a grandeza que se não burilava com frases de pequeno conceito, tão costumeiras nos 10 de Junho de hoje. Tudo o que Jorge de Sena pressagiou naquele célebre discurso da Guarda de 1977 tem-se infelizmente confirmado. A democracia portuguesa está deformada. Os partidos estão desacreditados e os políticos são desmoralizantes.

Portugal sobrevive num sonambulismo onde o desacerto se tornou coisa aprazível e a mediocridade a medida de todas as coisas. O desassombro intelectual e a braveza moral de um homem que, no momento dado, não hesitou em participar numa revolução armada, antecedente do 25 de Abril, conhecida por Revolta da Sé, é a única medalha de que Portugal precisa nos dias de hoje. Tudo o resto são imbecilidades de ocasião. Ou coisa parecida. 
Tenham por isso um muito bom dia.

(Crónica na rádio F - 9 de Junho de 2014)