A cidade da Guarda vai participar em mais um ato da tragédia que se
abateu sobre o país. Diz-nos a história que desde a implantação da República e do
posterior falhanço das medidas revolucionárias que se seguiram, há mais de 100
anos portanto, o país caiu na mais profunda das letargias sociais, económicas,
políticas e culturais.
Os países têm, invariavelmente, ciclos destes. Só que em Portugal o ciclo
parece nunca mais acabar. Vivemos uma época de continuidade das várias
pobrezas. Pobreza de pensamento, de discernimento e de lucidez. Como disse um
dia Miguel Torga, em Portugal
as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coação, ou por devoção. Vem
isto a propósito de, mais uma vez, ano após ano, a lista dos condecorados
para o 10 de Junho se recriar com uma assustadora previsibilidade.
A presidência da República parece-se cada vez mais com uma sociedade
amigável de palmadinhas nas costas. Ao colocar no mesmo patamar a carreira
construída a pulso, com trabalho e empenho, com a carreira construída à sombra
da sorte, do favor político e empresarial, da porta que se abriu em nome do
apelido ou da origem da casta, a presidência da República desvaloriza a noção
de serviço à comunidade e à causa pública em vez de prestar homenagem à cidadania
de exceção.
A atribuição de medalhas a peito no Dia de Portugal parece-se cada vez
mais com uma celebração barata e ordinária acompanhada de ofertas de brindes,
recepções e espectáculos anódinos para o povo ignorante se entreter antes de se
entregar aos tendões de Cristiano Ronaldo. Como se o momento mais importante
para a exaltação de uma cidadania de excepção, talhada no rigor, na seriedade
intelectual, na força do carácter, pudesse ser tão recorrentemente desvirtuado
perante a complacência e vacuidade dos frequentadores de salões, o silêncio dos
partidos políticos e dos seus dirigentes e a acomodação dos espíritos livres.
Há honrosas excepções, claro. Pois há. E há aqueles que pela sua forma de ser e
estar na vida, na vida coletiva, recusaram até tais medalhas. Mas são poucos.
Quando um dia a República voltar a ter um país e um povo que se
identifique maioritariamente com os valores da comunidade solidária e da
cidadania pura e dura, não sei o que será mais triste: se a lista dos
homenageados ou a lista de quem os homenageou.
Nunca me esqueço de umas outras comemorações do 10 de Junho, em 1977, por
causa do discurso de Jorge de Sena aqui na Guarda. O poeta advertiu então, com
veemência, para os perigos que corria a democracia, caso desistíssemos de ser
cidadãos. Esse discurso é hoje, cada vez mais, um documento impressionante,
pela previsão crítica e pela luminosa lucidez. Como era hábito, as declarações
de Jorge Sena fizeram então estremecer as cabecinhas bem-pensantes. Jorge Sena
nunca foi pessoa de moer as palavras. Nunca fez conversa mole. Sempre disse o
que achava que devia ser dito, fosse em que circunstâncias fossem, doesse a
quem doesse.
O País padreca, de literatos menores, de cabisbaixos campeões da
convivência, não perdoava a este homem livre e, ainda por cima, de alto coturno
intelectual, a grandeza que se não burilava com frases de pequeno conceito, tão
costumeiras nos 10 de Junho de hoje. Tudo o que Jorge de Sena pressagiou
naquele célebre discurso da Guarda de 1977 tem-se infelizmente confirmado. A
democracia portuguesa está deformada. Os partidos estão desacreditados e os
políticos são desmoralizantes.
Portugal sobrevive num sonambulismo onde o desacerto se tornou coisa
aprazível e a mediocridade a medida de todas as coisas. O desassombro
intelectual e a braveza moral de um homem que, no momento dado, não hesitou em
participar numa revolução armada, antecedente do 25 de Abril, conhecida por
Revolta da Sé, é a única medalha de que Portugal precisa nos dias de hoje. Tudo
o resto são imbecilidades de ocasião. Ou coisa parecida.
Tenham por isso um muito
bom dia.
(Crónica na rádio F - 9 de Junho de 2014)