segunda-feira, dezembro 23, 2024

E, mais um ano e recordo o conto "Natal" de Miguel Torga.

O Garrinchas é um personagem complexo, consciente da sua situação de miséria, mas, ao mesmo tempo, sonhador, ingénuo, malicioso. Malicioso até na forma de pedir a bendita esmola! As vicissitudes do velho mendigo, quando ele, para atingir os seus objetivos, apela para o sentimento religioso das pessoas rezando o Padre-Nosso no momento de pedir (embora não acredite, ele mesmo, no poder das orações. “Lá se tenho fé na oração isso era outra conversa. As boas ações salvam-nos. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem o sentido”).
Já na capela da Senhora dos Prazeres, Garrinchas volta à sua realidade, e o sentimento de preservação da vida é mais forte. Ainda tentando acender a fogueira para se aquecer, avista num canto da Sacristia o andor da procissão. Mesmo sabendo que seria um ato quase herético, imediatamente o traz para fora e o transforma em lenha para a fogueira. “Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo”.
Devidamente aquecido e enxuto, Garrinchas resolve cear. Corta um pedaço de broa, uma fatia de presunto. Porém, antes de começar a comer, sente que está a faltar alguma coisa.
Subitamente levanta-se, e dirige-se à entrada da Igreja, contempla a imagem da Virgem com o Menino no colo toda iluminada pelo clarão da fogueira e pergunta.
“-É servida?” Pareceu-lhe que a Santa e o Menino sorriam-lhe.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias-medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
“Consoamos aqui os três”, diz, com a pureza e a ironia de um patriarca. “A Senhora faz de quem é; e o pequeno, a mesma coisa. E eu, embora indigno, faço de São José”.

“Natal”, Miguel Torga, Novos Contos da Montanha.