sexta-feira, abril 05, 2024

Crónica

 Doentes, gestores, tarefeiros e boys

Quem já esqueceu os condicionalismos e constrangimentos impostos aos médicos e ao restante pessoal que trabalha no SNS?
A zelosa e cumpridora gestão hospitalar resolveu impor, quiçá para salvar o país, limitações no que dizia respeito a vários gastos, cumprindo directrizes governamentais.
A mais caricata medida adoptada pelos obedientes gestores teve que ver com o consumo de papel. Não, não falo de papel em sentido figurado, falo no sentido real do termo. E já nem falo de medicamentos e de outros produtos necessários ao funcionamento normal do SNS.
Lembrar que muitos médicos foram «chamados» pelos directores de serviço por estarem a usar demasiado papel nas prescrições aos doentes. Com a informação que o médico em questão ou mudava de atitude, ou sofreria represálias graves. Era preciso poupar nos consumíveis, esquecendo-se os ditos “zeladores da coisa pública” que a grande maioria dos utentes do SNS são cidadãos envelhecidos com pouca ou nenhuma literacia para receberem e interpretarem a mensagem do médico e muito menos a posologia não especificada na receita electrónica, ficando os doentes à mercê de boas ou más farmácias. 
Mas os médicos, conhecendo bem o meio em que se inserem, enfrentavam as listas de advertência, publicitadas por todo o hospital, aí já sem os tais constrangimentos de gastos, uma listagem colorida com as cores do semáforo conforme o bom comportamento na impressão de receituário.
Como era natural, os médicos sorriam perante tamanha imbecilidade. A teimosia de muitos em continuar a usar o papel para melhorar a defesa do doente levou a que tal medida caísse no esquecimento. Não passavam de medidas mascaradas de boas intenções, com promessas de ganhos em qualidade e saúde. Claro que não se procuraram efectivas e reais soluções para a melhoria dos serviços. Apenas e tão-só medidas de cosmética para enganar o cidadão comum.
Tudo isto não passou de uma patética tentativa de introdução de métodos de gestão das fábricas de automóveis nos hospitais para vigiar e para controlar os actos médicos, retirando capacidade de autonomia aos clínicos.
Em menos tempo do que demora um fósforo a apagar-se, percebeu-se que os gestores hospitalares continuam muito preocupados em vender a imagem de austeridade como forma de iludir os cidadãos acerca da real situação do SNS.
De facto, fazem crer que falta dinheiro para papel, mas publicitam aumentos de investimento enquanto pactuam com ganhos astronómicos de certos tarefeiros, ganhos da ordem das centenas de milhares de euros anuais, muito à custa de esquemas e da chico-espertice tão próprias do sangue lusitano.
Face ao que se passa com estes tarefeiros, como fica a autoestima e o sentido profissional dos restantes médicos? É que ao lado desses tarefeiros milionários trabalham os profissionais mais antigos que ainda resistem nas carreiras do SNS, os tais que recebem muito menos do que eles. São dois mundos que funcionam como a água e o azeite, com a desmotivação inerente, a incapacidade de se trabalhar em equipa, a desorganização, o antagonismo até, e os resultados que estão à vista em muitos hospitais
Diz-se que nunca houve tanto investimento na saúde, mas esquecem-se de dizer que esses aumentos, na sua maioria, são para pagar serviços a prestadores ou para seguir a outra via que está a dar cabo do SNS, que tem sido a de se pagar ao sector privado para receber os doentes do serviço público. É como entregar ao carrasco a corda com que há-de enforcar-nos!
É necessária uma revolução contra esta violência, contra este assassinato do SNS!
Posso até não saber exactamente como fazê-la, mas sei pelo menos que este caos diário, a competição e a desconfiança em vez da cooperação, minam a vida e a saúde mental dos profissionais e a probabilidade de uma reacção organizada a este caos.
E resta-nos concluir, face ao descalabro a que se assiste, que as consequências são principalmente de três ordens.
Primeiro, as pessoas que não se adaptam a esta anarquia e injustiça e abandonam o sistema, agravando os problemas.
Segundo, quando não o fazem, resistem ao caos e à injustiça a que os sujeitam, o que aumenta os conflitos.
Terceiro, todo este fogo cruzado resulta em menos saúde para todos com mais dinheiro gasto pelo contribuinte.
O maior investimento que se poderia fazer no SNS seria, para começar, retirar de lá a gestão partidária!
Mas é tal o nepotismo no SNS que isso seria quase como deixar um navio sem marinheiros. Ou os partidos… sem boys!

(Crónica jornal "O Interior" - 11 de Março 2024)