Esta
notícia faz-me lembrar um episódio ocorrido, na década de 60, do século
passado, em Vilar Formoso.
O
João contrabandista era um homem com apenas a 4.ª classe, mas de uma
inteligência e com uma aprendizagem informal que lhe permitia saber ser, estar
e fazer. Principalmente na sua actividade: contrabandista.
Ser-se
contrabandista era saber mais do que o inimigo. E, o inimigo, em território
português, era o guarda fiscal que convivia com a gente da terra, bebia uns
copitos e comia o naco do pão com o presunto na taberna da aldeia, em «sã» convivência.
Importava manter as «boas» aparências.
Um
dos mais temidos guardas era o «cinzas». Acoitava-se pela calada da noite, por
entre pinheiros e moitas, à espera do pobre contrabandista que fazia pela vida.
E, raro era o que conseguia levar a melhor ao «cinzas». Mas, o João
contrabandista se melhor a pensou, melhor a fez.
Um
belo dia, por alturas do S. João, calor sufocante montou a bicicleta e pôs um
saco de areia no banco de trás. Apertou as molas da roupa que prendiam as
bainhas das calças, para não as sujar na roda pedaleira. E, lá vai o João
«contrabandista» estrada fora. Ao chegar a Vilar Formoso tomou a direcção da
fronteira e avistou o «cinzas». Sorriu ao vê-lo.
-
Era hoje, pensou ele!
Pedalou
o que podia já que o calor apertava. Quando se aproximou da fronteira, um
tronco de madeira às riscas brancas e vermelhas, o «cinzas» com o seu ar sisudo,
de funcionário zeloso, feito à imagem do «chefe», fez-lhe sinal com a mão para
se deter.
Altivo,
arrogante e prepotente como se nunca tivesse visto o João, ordenou-lhe que saísse
da bicicleta. Ordem imediatamente cumprida. Enquanto segurava a bicicleta com
uma mão, o «cinzas» pediu-lhe o bilhete de identidade. Tirou uma carteira velha,
comprada na feira de Pínzio, já há alguns anos e «passou» a identificação para
a mão do «cinzas». Assim que o «cinzas» viu o bilhete de identidade olhou de
imediato para o saco.
-
O que levas aí?
O
tratamento da autoridade para o cidadão, sendo este de origem mais modesta, era
sempre feito na forma de «tu cá, tu lá»!
Não
havia lugar a salamaleques de qualquer espécie. Já a resposta do cidadão para a
autoridade era feita de modo formal.
-
Senhor guarda, o saco só tem areia!
-Areia?
– questionou, de forma tempestiva o «cinzas».
-
Sim areia, ripostou o João «contrabandista».
-
Abre o saco e deita a areia aí na estrada, ordenou o «cinzas».
E,
com muita paciência o João «contrabandista» lá fez o que o «cinzas» lhe
ordenara.
Depois
da areia toda despejada no chão, o «cinzas» remexeu-a, revolteou-a e virando-a
sem nada encontrar.
-
Bem, disse o «cinzas», podes apanhar a reia e passar a fronteira.
E,
o João «contrabandista» assim fez.
Debaixo
de um calor infernal apanhou a areia e meteu-a, de novo, no saco e lá seguiu
viagem para Espanha.
Ao
fim da tarde já estava o João «contrabandista» a regressar a Portugal e, de novo
o «cinzas» à espreita. A operação de fiscalização repetiu-se.
E,
repetiu-se todos os dias que o João «contrabandista» sabia que o «cinzas»
estava de «guarda» à fronteira.
O
João «contrabandista» não comentava o caso na aldeia, nem à própria família.
Segredo absoluto.
E,
as idas do João «contrabandista» sucediam-se amiúde. Por vários anos.
Um
dia, o «cinzas» já farto de tanto saco de areia tirado fora e revolteado,
decidiu chegar à fala com o João, agora num tom mais ameno e de «amigo».
-
Ó João diz-me lá afinal, o que andas a contrabandear com tantas idas a Espanha?
Areia não é de certeza!
O
João «contrabandista» percebeu logo ao que o «cinzas» vinha.
-
Nada, retorquiu o João.
-
Lá por ganhar uns tostões, às vezes, no contrabando, não quer dizer que o faça sempre, justificou o João.
Um
dia o João deixou de fazer a «viagem».
Comprou
um bilhete a um passador e deu o «salto» para terras de França.
Já
não de bicicleta, mas de carro, orgulhosamente chegou à fronteira de Vilar
Formoso num dia de Agosto. E, lá estava o «cinzas», sorridente, à espera do
João.
O
João parou o carro e de imediato foi mandado sair da viatura e, com a ajuda dos
familiares, tiraram toda a bagagem que traziam e foram revistados.
O
João ria-se a cada ordem do «cinzas».
Por
fim, o «cinzas» entre dentes atirou um «senhor condutor» para o João.
O
João sorriu.
No
dia da capeia nos Fóios, o «cinzas» aproximou-se do João e atirou-lhe a
pergunta que há tantos anos o apoquentava.
-
João, agora estás bem, tens dinheiro, há algo que me sobressalta dia e noite, disse o «cinzas» meio amargurado.
-
Desembucha homem. Diz lá o que te apoquenta assim tanto, respondeu o João com
ar de gozo, sabendo bem ao que o «cinzas» vinha.
-
Lembraste daquelas tuas idas a Espanha, com um saco de areia no banco da
bicicleta?, perguntou, meio a medo, o «cinzas».
-
Lembro-me, claro. Lembro-me bem! – respondeu o João sempre a rir-se.
-
Agora, já não precisas mais de fazer as tais visitas a Espanha, tens o teu
emprego em França, acrescentou o «cinzas».
-
Afinal o que contrabandeavas João? Não era areia, com toda a certeza,
argumentava o «cinzas» com tom melancólico.
-
Pois não! Para que havia de negociar sacos de areia seu burrinho de carga?,
rematou o João.
-
Eram bicicletas, seu brutinho!
E,
risada geral à volta da tenda do Carlos «zarolho»!