quarta-feira, abril 01, 2015

Os bolos PENHORADOS

 
 
Esta notícia faz-me lembrar um episódio ocorrido, na década de 60, do século passado, em Vilar Formoso.
O João contrabandista era um homem com apenas a 4.ª classe, mas de uma inteligência e com uma aprendizagem informal que lhe permitia saber ser, estar e fazer. Principalmente na sua actividade: contrabandista.
Ser-se contrabandista era saber mais do que o inimigo. E, o inimigo, em território português, era o guarda fiscal que convivia com a gente da terra, bebia uns copitos e comia o naco do pão com o presunto na taberna da aldeia, em «sã» convivência. Importava manter as «boas» aparências.
Um dos mais temidos guardas era o «cinzas». Acoitava-se pela calada da noite, por entre pinheiros e moitas, à espera do pobre contrabandista que fazia pela vida. E, raro era o que conseguia levar a melhor ao «cinzas». Mas, o João contrabandista se melhor a pensou, melhor a fez.
Um belo dia, por alturas do S. João, calor sufocante montou a bicicleta e pôs um saco de areia no banco de trás. Apertou as molas da roupa que prendiam as bainhas das calças, para não as sujar na roda pedaleira. E, lá vai o João «contrabandista» estrada fora. Ao chegar a Vilar Formoso tomou a direcção da fronteira e avistou o «cinzas». Sorriu ao vê-lo.
- Era hoje, pensou ele!
Pedalou o que podia já que o calor apertava. Quando se aproximou da fronteira, um tronco de madeira às riscas brancas e vermelhas, o «cinzas» com o seu ar sisudo, de funcionário zeloso, feito à imagem do «chefe», fez-lhe sinal com a mão para se deter.
Altivo, arrogante e prepotente como se nunca tivesse visto o João, ordenou-lhe que saísse da bicicleta. Ordem imediatamente cumprida. Enquanto segurava a bicicleta com uma mão, o «cinzas» pediu-lhe o bilhete de identidade. Tirou uma carteira velha, comprada na feira de Pínzio, já há alguns anos e «passou» a identificação para a mão do «cinzas». Assim que o «cinzas» viu o bilhete de identidade olhou de imediato para o saco.
- O que levas aí?
O tratamento da autoridade para o cidadão, sendo este de origem mais modesta, era sempre feito na forma de «tu cá, tu lá»!
Não havia lugar a salamaleques de qualquer espécie. Já a resposta do cidadão para a autoridade era feita de modo formal.
- Senhor guarda, o saco só tem areia!
-Areia? – questionou, de forma tempestiva o «cinzas».
- Sim areia, ripostou o João «contrabandista».
- Abre o saco e deita a areia aí na estrada, ordenou o «cinzas».
E, com muita paciência o João «contrabandista» lá fez o que o «cinzas» lhe ordenara.
Depois da areia toda despejada no chão, o «cinzas» remexeu-a, revolteou-a e virando-a sem nada encontrar.
- Bem, disse o «cinzas», podes apanhar a reia e passar a fronteira.
E, o João «contrabandista» assim fez.
Debaixo de um calor infernal apanhou a areia e meteu-a, de novo, no saco e lá seguiu viagem para Espanha.
Ao fim da tarde já estava o João «contrabandista» a regressar a Portugal e, de novo o «cinzas» à espreita. A operação de fiscalização repetiu-se.
E, repetiu-se todos os dias que o João «contrabandista» sabia que o «cinzas» estava de «guarda» à fronteira.
O João «contrabandista» não comentava o caso na aldeia, nem à própria família. Segredo absoluto.
E, as idas do João «contrabandista» sucediam-se amiúde. Por vários anos.
Um dia, o «cinzas» já farto de tanto saco de areia tirado fora e revolteado, decidiu chegar à fala com o João, agora num tom mais ameno e de «amigo».
- Ó João diz-me lá afinal, o que andas a contrabandear com tantas idas a Espanha? Areia não é de certeza!
O João «contrabandista» percebeu logo ao que o «cinzas» vinha.
- Nada, retorquiu o João.
- Lá por ganhar uns tostões, às vezes, no contrabando, não quer dizer que o faça sempre, justificou o João.
Um dia o João deixou de fazer a «viagem».
Comprou um bilhete a um passador e deu o «salto» para terras de França.
Já não de bicicleta, mas de carro, orgulhosamente chegou à fronteira de Vilar Formoso num dia de Agosto. E, lá estava o «cinzas», sorridente, à espera do João.
O João parou o carro e de imediato foi mandado sair da viatura e, com a ajuda dos familiares, tiraram toda a bagagem que traziam e foram revistados.
O João ria-se a cada ordem do «cinzas».
Por fim, o «cinzas» entre dentes atirou um «senhor condutor» para o João.
O João sorriu.
No dia da capeia nos Fóios, o «cinzas» aproximou-se do João e atirou-lhe a pergunta que há tantos anos o apoquentava.
- João, agora estás bem, tens dinheiro, há algo que me sobressalta dia e noite, disse o «cinzas» meio amargurado.
- Desembucha homem. Diz lá o que te apoquenta assim tanto, respondeu o João com ar de gozo, sabendo bem ao que o «cinzas» vinha.
- Lembraste daquelas tuas idas a Espanha, com um saco de areia no banco da bicicleta?, perguntou, meio a medo, o «cinzas».
- Lembro-me, claro. Lembro-me bem! – respondeu o João sempre a rir-se.
- Agora, já não precisas mais de fazer as tais visitas a Espanha, tens o teu emprego em França, acrescentou o «cinzas».
- Afinal o que contrabandeavas João? Não era areia, com toda a certeza, argumentava o «cinzas» com tom melancólico.
- Pois não! Para que havia de negociar sacos de areia seu burrinho de carga?, rematou o João.
- Eram bicicletas, seu brutinho!
E, risada geral à volta da tenda do Carlos «zarolho»!