Começo esta minha crónica
com uma declaração de intenções. Não sou dos que, quando o inimigo vai ao
tapete e está em estado de agonia, o massacra ainda mais. Não, não sou. Em tudo
na vida, até nas desgraças, é preciso saber ser e estar. Por isso confesso que se
até não me espantaram as fotomontagens de José Sócrates agarrado a umas grades
de prisão, com a legenda “Eu só sei que nada sei” colocada logo por baixo, me chocou
o espetáculo que foi montado à volta da detenção em si. É que uma coisa são as
emoções populares, outra bem diferente são as pulsões populistas.
Não tenho razões para
suspeitar que Sócrates fugisse à justiça, caso soubesse que era procurado. Por
isso, recordando que dias antes foram detidas mais três pessoas, a sua
detenção em pleno aeroporto só pode justificar-se pelo risco de manipulação ou
de destruição de provas após o desembarque. Ainda assim, o facto de desde o
primeiro minuto se encontrarem no local jornalistas da imprensa escrita e das
televisões, permite-nos perceber que alguém tratou de garantir que a detenção
não passaria despercebida. E a justiça não deveria precisar de tal coisa…
Compreendo que os
partidos, todos eles, tenham depois abordado o assunto com luvas de pelica. E
não foi só por causa da conversa habitual de que “o que pertence à política é
da política, o que pertence à justiça é da justiça”. Foi porque o que aconteceu
nos envergonha a todos. Portugal é hoje notícia em todo o mundo, e não
forçosamente pelas melhores razões. Por isso, qualquer partido que tentasse
cavalgar esta onda, ficava a perder.
Não significa isto que o
caso deva ser desvalorizado. Muito pelo contrário. Mas deve ser discutido pelas
razões certas e sempre com respeito pela presunção de inocência. Assim, se os
crimes vierem a ser confirmados, o resultado final será decerto bem mais
incontestável e pedagógico. E olhem que bem precisados estamos, a crer num
outro caso que vou contar.
Noticiou o Jornal de
Notícias que a “Polícia Judiciária investiga ajuda de deputados do PSD a
clínicas privadas”. A história resume-se em poucas palavras. Em Coimbra havia
uma clínica a operar doentes do SNS e duas outras, concorrentes da primeira, que
pretendiam fazer o mesmo mas que ainda não tinham conseguido obter autorização
para tal. Até que os dirigentes das duas clínicas em causa recorreram à ajuda
de dois deputados do PSD e, todos em conjunto, reuniram com o presidente da ARS
do Centro. Como que por milagre, os contratos há tanto tempo almejados foram
assinados logo no dia seguinte!
Esta história remete-nos
para o velhinho “fator cunha” e só não chamou a atenção popular porque
entretanto estoirou nos escaparates o escândalo dos vistos dourados e do caso
Sócrates. E nisto de escândalos também há primeira divisão, liga de honra e
campeonato distrital…
Convém além disso não
esquecer que, com toda a probabilidade, foi a clínica que perdeu o monopólio
que até aí detinha, quem fez chegar o assunto à comunicação social. É que a
vingança por se perder um monopólio, afinal serve-se fria. Ou quente, conforme
a opinião do ouvinte.
A verdade é que Portugal
sofre de um deficit crónico de cidadania. E é isso que explica os numerosos escândalos
a que temos assistido, que nos dariam seguramente a bota de ouro se o
campeonato fosse o da corrupção e do compadrio. Dificilmente nos desalojavam do
1.º lugar europeu!
Por isso o problema não é
político. Ou antes, não é partidário. O problema está no “sistema”, aquela
coisa que nos governa há décadas. E o “sistema” somos todos nós. Enquanto a
maioria dos portugueses continuar a achar que questionar, participar e
denunciar “só dá chatices”, vamos ter cenas destas. E aí, quem estiver limpo
que atire a primeira pedra.
Agora segue-se a novela habitual.
Piadas em que Sócrates se questiona se não deveria ter antes melhorado o parque
prisional em vez do parque escolar, ou se foi boa ideia ter inaugurado o Campus
da Justiça onde agora vê abrir-se um abismo por baixo dos pés. A justiça, essa,
vai andar devagar, devagarinho, parada. Como é costume. Muito bom dia a
todos!
(Crónica na rádio F - 24 de Novembro de 2014)