«O cínico, parasita da civilização, vive de negá-la, simplesmente porque está convencido de que esta não lhe faltará. Que faria o cínico num povoado selvagem onde todos, naturalmente e a sério, fizessem o que ele, de farsa, considera como o seu papel pessoal? O que é um fascista se não fala mal da liberdade e um surrealista se não abjura a arte?»
Ortega y Gasset, in "A Rebelião das Massas"
No verão passado, a propósito da novela das camas «fantasmas» do hospital de Seia, Ana Jorge, ministra da Saúde, afirmou que pela Guarda se diziam muitas coisas sobre a Saúde que não eram verdade. O pior, e isso a senhora ministra já não disse, são as coisas que são verdade e de que certos partidos nem querem ouvir falar na Guarda.
Deixando para trás a pseudo-construção de um hospital novo (onde está afinal a remodelação da parte antiga?), a palhaçada da perseguição a médicos a pretexto do papel timbrado, a lamentável violação de correspondência por parte de responsáveis do hospital e os miminhos trocados entre o senhor governador civil da Guarda e alguns da Covilhã, cinjamo-nos ao pagamento ilegal e excessivo de horas extraordinárias à directora clínica da Unidade Local de Saúde da Guarda.
Em 15 de Janeiro de 2009 a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) autorizou a referida directora clínica a prestar actividade médica de forma não regular e remunerada, ao abrigo da legislação em vigor, tendo como limite remuneratório uma terça parte da remuneração que compete ao exercício de funções como vogal do conselho de administração da ULS da Guarda, com a salvaguarda adicional de se entender essa actividade subsumida num conceito de marcada excepcionalidade.
Em 3 ocasiões posteriores o presidente da administração da ULS, não conformado com a limitação imposta, e com o intuito de obter uma generosa subida do tecto remuneratório imposto, remeteu superiormente informações que não correspondiam nem nunca corresponderam à verdade.
Da primeira vez forneceu dados objectivamente falsos à tutela, relativos à disponibilidade de médicos do serviço de cirurgia, informando da existência de apenas 4(quatro) médicos quando à mesma data a escala de urgência incluía 8(oito)!
Da segunda vez argumentou que o trabalho da directora clínica era indispensável (não era…) para assegurar a escala do serviço de urgência em noites, feriados e fins-de-semana quando, só para exemplo, em Setembro de 2009 a referida directora clínica foi escalada para 7 (sete) serviços de urgência, dos quais 5 (cinco) se realizaram em dias úteis e durante o período normal de trabalho em que deveria estar a exercer as suas funções como directora clínica e não como médica.
Da terceira vez afirmou que a directora clínica realizava habitualmente no Serviço de Urgência um turno por semana, durante a noite, e um fim-de-semana por mês (Sábado e Domingo), quando a consulta às escalas de serviço demonstra a prestação de trabalho essencialmente em regime diurno, tal como aconteceu por todo o ano de 2009, com óbvio impacto no exercício concomitante do cargo de direcção clínica.
Para cúmulo, enquanto” trabalhava” para tentar convencer a tutela a subir o tal limite remuneratório, escondeu o facto de que as verbas em causa já foram efectivamente pagas, sem autorização superior. Só em 12 meses a Directora Clínica da ULS recebeu 55.374,57 € referentes a horas extraordinárias.
Não deixa de ser tonitruante o silêncio do PS local sobre esta matéria, para mais depois de ter apresentado na Assembleia Municipal da Guarda, com pompa e circunstância, uma moção a propósito dos bónus dos gestores públicos. Mas isso foi antes deste caso vir a público! Terá este silêncio alguma coisa a ver com o facto de o presidente da ULS pertencer ao PS e de a directora clínica ser deputada eleita nas suas listas à mesmíssima Assembleia Municipal? Ou espera-se que a tutela venha agora parir à pressa uma autorização à medida das conveniências?
Onde estão a coerência e a ética políticas num momento em que são pedidos tantos sacrifícios aos portugueses? Será que a coutada é um domínio à parte, onde a lei é afinal a do xerife?
Haja vergonha!
(artigo publicado no jornal «O Interior», 11 de Junho 2010)