quinta-feira, dezembro 11, 2025

Crónica

 A saúde, a doença, a ganhuça e a perigo

Mais uma vez, o SNS é notícia pelas piores razões. É notório o desnorte que se vai vivendo à volta de gestores hospitalares, administradores, médicos, enfermeiros e restantes profissionais da área. O caso da grávida que faleceu no hospital Amadora-Sintra e da sua bebé, bem como o anúncio da greve dos tarefeiros às Urgências hospitalares, trouxeram mais sal para as feridas já abertas. No primeiro caso, a ministra Ana Paula Martins agravou até todo o cenário proferindo na Assembleia da República informações erróneas e comprometedoras das suas funções. Dizer que a vítima era natural da Guiné-Bissau, que estava em Portugal apenas em turismo de saúde, e que só começou a ser seguida a partir das 38 semanas de gravidez, não ajudou. Era tudo falso e foi negado por informações posteriores, só servindo para mostrar que o desnorte vai de cima a baixo.

O SNS tem sido, desde a sua criação, um dos pilares centrais da sociedade portuguesa, assegurando equidade, universalidade e solidariedade no acesso à saúde, à luz de um princípio constitucional. Contudo, o modelo em vigor mostra claros sinais de exaustão, com mais e mais custos e decréscimo relativo de desempenho, e com um aumento exponencial dos utentes a necessitar do SNS. Uma sociedade mais envelhecida e pobre. O SNS está em colapso. Nos cuidados de saúde primários, mais de 1,6 milhões de utentes continuam sem médico de família, e atrasam-se as cirurgias. Na saúde materno-infantil, os encerramentos frequentes de serviços de urgência obstétrica são o

retrato trágico de um sistema que colapsa em áreas absolutamente vitais. Não há capacidade formativa no SNS, nomeadamente nas especialidades. Mas a formação inicial também deixa muito a desejar. Ovalor de investimento público nas escolas de Medicina é cerca de 50% do que era há dez anos. Assistentes pro bono, salários de professores miseráveis, monitores pro bono, laboratórios desadequados, etc.

Mas, apesar de tudo, os médicos recém-formados são muito requeridos por parte dos governos estrangeiros. Falta mais de um milhão de profissionais da área da saúde na Europa. Há feiras, duas vezes por ano, no Porto e em Lisboa, onde pontuam os países escandinavos, a Alemanha, França, Inglaterra e Irlanda, para recrutarem os nossos médicos recém-formados. Portanto, a

competitividade não é só cá, com os privados, mas também com esses governos estrangeiros. Ao mesmo tempo, há cada vez mais médicos que trocam a entrada numa especialidade pela simples

prestação de serviços, nivelando genericamente por baixo a capacidade técnica da classe a nível nacional.

No tempo de Correia de Campos havia um regime de 42 horas de dedicação exclusiva e um regime de 35 horas. Correia de Campos alterou o pagamento do trabalho extraordinário. Até aí, os

médicos que estavam no regime das 35 horas tinham o mesmo valor-hora que os das 42 horas de dedicação exclusiva. Com Correia de Campos os das 35 horas começaram a ganhar menos pelas horas extraordinárias e começaram, ao chegarem ao limite das 150 horas, a não quererem mais horas extraordinárias. Foi o tiro de partida para as empresas dos médicos tarefeiros, unipessoais ou não, com um regime fiscal genericamente mais favorável! Só no ano passado, o SNS pagou 212 milhões de euros a estas empresas. Até setembro deste ano, já pagou 175 milhões. Cerca de 66% desta verba foi com médicos contratados para os serviços de urgência. Mais grave ainda, 35% dos médicos contratados como prestadores de serviços não tinham

especialidade, mas foi este grupo que representou a maior fatia da despesa total com os tarefeiros - 75 milhões. Isto é, os menos preparados tecnicamente são cada vez mais a base da despesa deste sistema! E estamos a falar de médicos que trabalham quando e onde querem…

Para agravar tudo isto, a demografia não perdoa. O futuro é cruel e promete muito mais despesa com os idosos. Ora, é sabido que quando a percentagem destes aumenta numa população, o

esforço de cada jovem para sustentar financeiramente essa despesa também aumenta. E já não abordo os problemas das outras classes da Saúde, enfermeiros, por exemplo, nem dos custos galopantes com novos fármacos, ou dos mil e um outros problemas que não temos tempo de abordar. Ser-se ministro da Saúde é hoje particularmente difícil e até perigoso. Mas ser-se doente é ainda mais...

(Crónica Jornal "O Interior" - 10 novembro 2025)