quarta-feira, março 23, 2016

A (des)propósito

GOSTEI DE LER


ENTRE FINGIR E ACTUAR

Há demasiada cagança em torno da poesia, o que desfaz um pouco a ideia desta ser uma arte ameaçadora da lei e da ordem estabelecidas. Na realidade, com o tempo a poesia tem vindo a tornar-se numa arte decorativa. É o broche na lapela da cidade ideal. Não ameaça nada nem é lei, serve para epígrafes. Os poetas não sujam as mãos na terra, viajam pouco, quando viajam, andam pelo Facebook a distribuir likes uns pelos outros, comem do que lhes põem na mesa e dizem: as minhas palavras não valem nada, podem publicá-las à vontade desde que o meu nome apareça ao lado delas. E isto é giro. Mas não é bem o que se espera da poesia. Pelo menos não é bem o que eu esperava da poesia quando ambos estávamos vivos. A poesia morreu, eu estou vivo na medida em que estou morto. Gostava que tudo isto que agora escrevo fosse mentira, mas não é. O meu cinismo não chega tão longe. Não me interessa se os livros de poesia vendem ou não, se têm tiragens de 1000 ou de 100, se os poetas aparecem nos jornalecos ou se os festivais exibem os poetas, não me interessa se a revista de poesia circula nem se há leitores, essa massa tão estranha que forma um mundo de hábitos inconcebíveis onde houvesse coerência. Em suma, estou-me nas tintas para a sobrevivência da poesia quando observo nos poetas os mesmíssimos comportamentos que posso observar nos crápulas e nos cretinos que dão forma ao mundo. Sabujice, oportunismo, mediocridade. Regra geral, vamos todos muito bem uns ao lado dos outros. Uns a dizer bem, outros a dizer mal, outros a dizer bem de quem diz mal, outros a dizer mal de quem diz bem. Regra geral, vamos todos geralíssimos. Dignos de nota e de apontamento e de estrelas e de admiração por incautos ou precavidos, por pretensiosos ou presunçosos admiradores, os hipócritas leitores. Dignos da ignorância e do esquecimento a que nos votarão em dias vindouros, fazemos o serviço mais sujo: vendemo-nos. Faz sentido haver um dia para a Primavera e outro para a pasta de papel, talvez até faça sentido haver um dia para a Poesia. O que eu não percebo é a inexistência de um dia para o medo ou o dia das fugas para a frente, também a hipocrisia merecia o seu dia e até o ódio revigorante dos arrivistas talvez merecesse ser celebrado. Agora perder tempo com isto da poesia num certo dia é contraproducente, chega a ser ofensivo, é como esperar das vinte e quatro horas apenas vinte e quatro horas, é não ir além da lógica com os esforços da paixão, é largar pela amargura o desejo. Podia contar pelos dedos as palavras que me restam para falar de temas tão urgentes como o refugiado ao abandono, a adolescente prostituída, a guerra entre cartéis, valas comuns, podia contar pelos dedos o que nos sobra de palavras para descrever este magnífico dia em que todos falam de amor, de liberdade e de sonho enquanto o ódio, o desespero e a subserviência se espalham pelo mundo. O que tem de relevante uma arte cujo mérito principal é celebrar, cultivar, enaltecer e adorar o inútil? Tenho ocupado muito do meu tempo de vida com a poesia, escrevi, publiquei, comentei, vendi, colaborei e em nada disso eu alguma vez senti tanta poesia quanto a sinto quando paro para receber do ar que respiro a única voz que me convence. A poesia pode resumir-se ao fazer, mas verdadeiramente poético é parar, não fazer nada, aquietar o corpo no silêncio de uma sombra e ficar a olhar para o mundo como uma minúscula parte integrante deste desassossego colectivo que nos mata. Morrer momentaneamente é poético, escrever é só um acto de vaidade como outro qualquer. Nada espero da poesia, nada tem para me oferecer, nada espero, nada, absolutamente nada. E no entanto continuo a escrever, a ler, a comentar, a divulgar, a vender, como se isso oferecesse algum sentido à vertiginosa queda num abismo de desilusões que é ver os rebanhos da poesia tão ordeira e respeitosamente obedientes aos seus pastores como quaisquer outros rebanhos. O que eu queria mesmo era poder embrulhar-me nas barbas do Walt Whitman e nelas adormecer a sonhar com a estrada larga, meter as mãos nos bolsos e trazer sobre os ombros a leveza de um espírito nobre, passar por tudo quanto circula com a confiança de quem pára no centro de uma praça e respira fundo o vento das manhãs. Poesia? Não importa, não interessa, é só mais um pretexto para a preguiça de quem entre fingir e actuar já não vislumbra fronteira alguma.