ENTRE
FINGIR E ACTUAR
Há
demasiada cagança em torno da poesia, o que desfaz um pouco a ideia desta ser
uma arte ameaçadora da lei e da ordem estabelecidas. Na realidade, com o tempo
a poesia tem vindo a tornar-se numa arte decorativa. É o broche na lapela da
cidade ideal. Não ameaça nada nem é lei, serve para epígrafes. Os poetas não
sujam as mãos na terra, viajam pouco, quando viajam, andam pelo Facebook a
distribuir likes uns pelos outros, comem do que lhes põem na mesa e dizem: as
minhas palavras não valem nada, podem publicá-las à vontade desde que o meu
nome apareça ao lado delas. E isto é giro. Mas não é bem o que se espera da
poesia. Pelo menos não é bem o que eu esperava da poesia quando ambos estávamos
vivos. A poesia morreu, eu estou vivo na medida em que estou morto. Gostava que
tudo isto que agora escrevo fosse mentira, mas não é. O meu cinismo não chega
tão longe. Não me interessa se os livros de poesia vendem ou não, se têm
tiragens de 1000 ou de 100, se os poetas aparecem nos jornalecos ou se os
festivais exibem os poetas, não me interessa se a revista de poesia circula nem
se há leitores, essa massa tão estranha que forma um mundo de hábitos
inconcebíveis onde houvesse coerência. Em suma, estou-me nas tintas para a
sobrevivência da poesia quando observo nos poetas os mesmíssimos comportamentos
que posso observar nos crápulas e nos cretinos que dão forma ao mundo.
Sabujice, oportunismo, mediocridade. Regra geral, vamos todos muito bem uns ao
lado dos outros. Uns a dizer bem, outros a dizer mal, outros a dizer bem de quem
diz mal, outros a dizer mal de quem diz bem. Regra geral, vamos todos
geralíssimos. Dignos de nota e de apontamento e de estrelas e de admiração por
incautos ou precavidos, por pretensiosos ou presunçosos admiradores, os
hipócritas leitores. Dignos da ignorância e do esquecimento a que nos votarão
em dias vindouros, fazemos o serviço mais sujo: vendemo-nos. Faz sentido haver
um dia para a Primavera e outro para a pasta de papel, talvez até faça sentido
haver um dia para a Poesia. O que eu não percebo é a inexistência de um dia
para o medo ou o dia das fugas para a frente, também a hipocrisia merecia o seu
dia e até o ódio revigorante dos arrivistas talvez merecesse ser celebrado.
Agora perder tempo com isto da poesia num certo dia é contraproducente, chega a
ser ofensivo, é como esperar das vinte e quatro horas apenas vinte e quatro
horas, é não ir além da lógica com os esforços da paixão, é largar pela
amargura o desejo. Podia contar pelos dedos as palavras que me restam para
falar de temas tão urgentes como o refugiado ao abandono, a adolescente
prostituída, a guerra entre cartéis, valas comuns, podia contar pelos dedos o
que nos sobra de palavras para descrever este magnífico dia em que todos falam
de amor, de liberdade e de sonho enquanto o ódio, o desespero e a subserviência
se espalham pelo mundo. O que tem de relevante uma arte cujo mérito principal é
celebrar, cultivar, enaltecer e adorar o inútil? Tenho ocupado muito do meu
tempo de vida com a poesia, escrevi, publiquei, comentei, vendi, colaborei e em
nada disso eu alguma vez senti tanta poesia quanto a sinto quando paro para
receber do ar que respiro a única voz que me convence. A poesia pode resumir-se
ao fazer, mas verdadeiramente poético é parar, não fazer nada, aquietar o corpo
no silêncio de uma sombra e ficar a olhar para o mundo como uma minúscula parte
integrante deste desassossego colectivo que nos mata. Morrer momentaneamente é
poético, escrever é só um acto de vaidade como outro qualquer. Nada espero da
poesia, nada tem para me oferecer, nada espero, nada, absolutamente nada. E no
entanto continuo a escrever, a ler, a comentar, a divulgar, a vender, como se
isso oferecesse algum sentido à vertiginosa queda num abismo de desilusões que
é ver os rebanhos da poesia tão ordeira e respeitosamente obedientes aos seus
pastores como quaisquer outros rebanhos. O que eu queria mesmo era poder
embrulhar-me nas barbas do Walt Whitman e nelas adormecer a sonhar com a
estrada larga, meter as mãos nos bolsos e trazer sobre os ombros a leveza de um
espírito nobre, passar por tudo quanto circula com a confiança de quem pára no
centro de uma praça e respira fundo o vento das manhãs. Poesia? Não importa,
não interessa, é só mais um pretexto para a preguiça de quem entre fingir e
actuar já não vislumbra fronteira alguma.