terça-feira, março 22, 2016

Ponto de Vista


É com tristeza e preocupação, sentimento que julgo que será partilhado por todos os ouvintes, que assisto ao que se passa no Brasil. Num país em que a corrupção é endémica, o que espanta não é a reação do povo, mas sim a dos agentes políticos e judiciais. De facto, para compreendermos a verdadeira génese do problema e aquilo que se pode ou não esperar da classe política lá do sítio, importa recuar ao denominado «mensalão», escândalo de corrupção dos anos 2005 e 2006 que consistiu na venda de votos por parte de deputados do Congresso brasileiro. Envolveu membros do governo do então presidente Lula da Silva e de praticamente todos os partidos brasileiros, independentemente da respetiva tendência política ou ideológica.

Foram penalmente indiciados 470 implicados. Desde então, a credibilidade da classe política foi caindo até chocar de frente com o atual escândalo «lava jato», um esquema de lavagem de dinheiro suspeito de movimentar o equivalente a cerca de 4 mil milhões de euros da Petrobrás, no qual estão envolvidos vários partidos como o PP, PT e PMDB – uma espécie de partidos do arco do poder – e empresários e políticos como Lula da Silva.

O "exercício do poder", como tragicamente demonstrado pela história dos povos, transforma-se numa droga dura para aventureiros atraídos – sobretudo em tempos de crise – para as fornalhas do Estado. Se o Brasil não pertencesse ao restrito clube das grandes potências, a inacreditável fuga de Lula à justiça, acoitando-se no governo da sua protegida Dilma, seria apenas mais um burlesco episódio em que política e banditismo se confundiriam num qualquer lugar esquecido do 3.º mundo.

A verdade é que todo aquele povo compreende como ninguém a corrupção, fenómeno tão inscrito no ADN do seu sistema político que grassa há décadas com a mesma naturalidade de quem respira sem se dar conta disso. Por essa razão, quando alguém votava na direita, fazia-o sem grandes ilusões relativamente à matéria. Mas Lula, e depois dele Dilma, foram eleitos noutro contexto. Cavalgaram a esperança de fazer a diferença, de quebrar uma maldição que parecia eterna e inamovível. E não há nada pior do que desiludir de forma chocante a esperança de um povo. É assim que nasce o desespero e, com ele, o clima propício às ditaduras ou coisas do género.

Este não é um combate entre honestos da direita e ladrões da esquerda ou entre malandros da direita e puros da esquerda. Nada disso. Este é sobretudo um combate pelo poder, que é o sítio onde está o dinheiro. A corrupção é apenas o pretexto no local certo e à hora certa.

Na guerra em curso, o poder judicial não é uma entidade neutra e justa. Faz também parte, aliás sem grandes pudores, dessa luta pelo poder. O famoso juiz Moro é um conhecido simpatizante do PSDB, um dos partidos que concorrem com o PT – o partido de Lula – ao pote do ouro. O episódio da revelação pública das escutas a Dilma e Lula é um exemplo de como no Brasil dos dias de hoje vale tudo, até arrancar olhos.

Desiludam-se aqueles que acreditam que no Brasil há um poder judicial, executivo e legislativo, independentes entre si. Por isso, ao refugiar-se na teoria da cabala e do golpe de estado, mesmo que até lhe assista alguma razão, Lula da Silva assinou a sua sentença de morte política e talvez mais qualquer coisinha. Descer do pedestal dos deuses ao dos mortais é muito pior do que nunca lá ter subido. Lula concorre hoje com aqueles velhinhos ditadores da América Latina que recorriam aos mesmíssimos argumentos sempre que se sentiam acossado pelos tribunais ou pelo escrutínio público.

O problema é que nesses tempos, uns e outros – tribunais e povos – raramente tinham consciência da sua própria importância enquanto agentes da História. Esses tempos passaram. E pelos vistos Lula não deu por isso. Uma velha raposa da política e da historiografia europeia, de seu nome Lord Acton, disse um dia que se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. Lord Acton, no Brasil, não teria provavelmente grande audiência. Mas se afirmasse que o poder inebria e que o poder absoluto inebria absolutamente, a conversa já seria outra…
Muito bom dia a todos.
 
(Crónica rádio F - 21 de Março 2016)