terça-feira, março 15, 2016

Ponto de Vista


A última semana presenteou-nos com mais do que uma cena digna do folclore monárquico, provando que afinal uma república pode não ser só das bananas mas também de foguetório, sociedades amigáveis de palmadinhas nas costas e mais contas caladas para os contribuintes.

De um lado fechou-se um ciclo com a saída de Cavaco Silva, cuja longa e progressivamente decadente carreira política me transporta inevitavelmente para um universo em que não consigo deixar de o imaginar como uma espécie de chefe tribal africano meio gágá no reino da cavaquilândia. Por cá, como temos a mania que somos diferentes, chamam-lhe pomposamente cavaquistão. Para aquilo que quero dizer, também serve.

Cavaco vai finalmente poder gozar as suas reformas, as tais que sabiam a pouco para quem tão pouco defendeu as do comum dos portugueses. Diz-se que vai ainda somar a famosa subvenção vitalícia, a tal dos direitos adquiridos e ratificados pelo Tribunal de Contas, às pensões de dez mil euros brutos que agora recebe.

Como isso ainda é pouco, Cavaco vai ficar instalado num palácio que pertenceu em tempos à mulher de Frei Luís de Sousa. De convento de freiras a poiso de mordomia foi só uma questão de euros, qualquer coisa como 0,5 milhão só para obras de restauração. Mas, para além da principesca acomodação, Cavaco terá ainda direito a uma secretária, a um assessor e a viatura com motorista. E nem precisa de ir a Espanha meter combustível, uma vez que o mesmo lhe é oferecido pelos contribuintes portugueses, com mais suor de uns do que de outros. É aquilo que se pode chamar de uma boa vida! Para quem em tempos tinha de fazer pela dita e até tentou rapar um tachito lá para os lados da PIDE, pode dizer-se que Cavaco é a prova de que o nosso modelo da ascensão social afinal funciona na perfeição. Pelo menos para alguns, o que já não é mau.

Do outro lado, é Paulo Portas quem abandona as lides partidárias. Não consta que tenha saído de submarino, nem lhe vi aquele boné de pseudoagricultor a que já me tinha habituado por tempos de feiras e romarias. Mas conseguiu não se livrar daquele cheirinho a TE DEUM e do ar janota. Em jeito de recompensa, Portas concede-nos a graça de não termos de aturar mais decisões irrevogáveis nem aqueles discursos parecidos com os que dirijo o meu cão quando ele faz chichi no tapete.

O cerimonial com que tudo isto se passou, o tempo de antenas nas televisões, as imensas horas de comentários, as inúmeras teorias sobre o futuro, o marketing sempre a puxar ao exagero, a falta de desprendimento mediático, tudo isso, quer num caso, quer no outro, demonstram até que nível uma democracia consegue descer. Ou antes, demonstram que uma democracia consegue mesmo descer ao nível dos seus políticos, na proporção direta da sua falta de escrúpulos e de consciência do ridículo.

Numa altura em que se esperava sobriedade e contenção, humildade e discrição, a forma como Marcelo se entronizou, sempre na esteira do populismo e do autoconvencimento, apenas despertam em mim uma sensação de dejá-vu que não augura nada de bom. Portugal mais parecia uma monarquia do que uma república. E da última vez que tivemos uma a sério, o rei até nem gostava muito de cá viver. «Lá vou eu ter que voltar para aquela choldra», queixou-se um dia o Rei D. Carlos, no momento de iniciar uma viagem de regresso a Portugal. A verdade é que o rei foi assassinado, a choldra manteve-se, prosperou, ramificou para dentro do estado, dos media, e da política. Continua vivinha da silva e deu nisto que nós sabemos.

É em alturas destas que me lembro de Manuel de Arriaga, o nosso primeiro presidente da República. Não dispôs de residência oficial nem de viatura do estado. Pagou do seu próprio bolso todas as despesas, inclusive o aluguer do palácio. E tinha apenas um polícia à porta. “Era como se não existisse”, desabafou um dia. Por isso, a bem da minha inteligência e sanidade mental, deixem por favor de me falar na política de afectos. Falem antes de proveitos. Que é aquilo que os move.

Tenham um muito bom dia.

(Crónica na Rádio F – 14 de Março de 2016)