Esta semana o governo mostrou-se embaraçado com a revelação,
por parte de alguns órgãos de comunicação social, de que a célebre Contribuição
Extraordinária Social aplicada às reformas passaria de provisória a permanente.
Eu, pelo contrário, não fiquei nada embaraçado. É que lembro-me muito bem de
que este governo tem por primeiro-ministro alguém que, em tempos de campanha
eleitoral, jurava a pés juntos que nunca, em tempo algum, procederia a aumentos
de impostos ou a cortes nos vencimentos ou nos subsídios de natal e de férias.
Somos governados por pessoas que não têm palavra, vergonha
ou escrúpulos. Dizem tudo o que lhes vier à cabeça, desde que acreditem que
isso os ajuda a manterem-se no poder. E o pior de tudo é que, porque aquilo que
cada um julga adequado dizer varia com a sua própria perspectiva da vida, uns
dizem uma coisa e outros dizem outra completamente diferente. É o que acontece
quando a luz condutora do processo deixa de ser a verdade.
Por isso, à cautela, a política consiste agora em apalpar
primeiro e aplicar depois. Os cortes são servidos aos bocadinhos, uns a seguir
aos outros, como se fossem o último antes da recuperação económica. Contudo,
quem percebe de gastronomia política já compreendeu que esta estratégia encaixa
menos na sobremesa do que nos aperitivos de uma austeridade que continuará a
ser-nos servida por muito tempo.
O problema de fundo é que as reformas são o resultado de um sistema
cujo equilíbrio dependia, até agora, dos salários sobre os quais incidiam os
descontos que as financiavam. Assim, de cada vez que se baixam salários,
provoca-se a prazo um corte idêntico nas reformas, o qual se vai somar aos que já
são decididos por via arbitrária e política.
A culpa, pretende-se, é da demografia. O governo não explica
que compaginando a demografia com o progresso tecnológico, os equipamentos
produtivos, que substituíram cada vez mais a mão-de-obra humana, deveriam,
também eles, contribuir para o financiamento das reformas.
A demografia é um resultado directo do progresso social e tecnológico
na Europa e Estados Unidos. Não é forçosamente uma coisa má. E quando é, é-o
por culpa de políticas desajustadas dos governos, assentes no imediatismo do
lucro e na ganância dos mercados, que arrastam a desprotecção social e económica
dos trabalhadores e respectivas famílias.
O mais trágico é que o governo se queixa por ter cão, e por
não ter. Queixa-se da falta de jovens, mas queixa-se também do seu excessivo
número, razão pela qual os aconselhou a emigrarem. Tem em mãos uma taxa de
desemprego jovem de 40%, mas não tem qualquer solução para os colocar a descontar
para as reformas dos mais idosos e deles próprios.
À incompetência e à cegueira ideológica do governo, do nosso
e de outros, soma-se um perverso círculo vicioso de inflexão no crescimento da
massa salarial, iniciada com a adesão a um euro que transferiu para a esfera
laboral os mecanismos de ajustamento que deixaram de poder fazer-se através da
desvalorização cambial. Este processo tem sido comandado por uma quadrilha de
autênticos delinquentes banqueiros.
As relações laborais foram alteradas pelo menos três vezes,
todas elas direccionadas para a redução dos salários e desvalorização das
carreiras sobre as quais se realizam os descontos que por sua vez financiam a
Segurança Social e os serviços públicos.
A história já viu muitos impérios caírem por menos. No caso presente
o que me preocupa é viver no próprio tempo em que tudo acontece. Tenho
consciência de que, por este caminho, vou acabar os meus dias sem reforma, sem
direitos e sem dignidade alguma.
O que me pergunto é se todos os que defendem ou toleram as
medidas do governo têm a mesma consciência relativamente ao que os espera.
Diz a Bíblia que o insensato é insolente e seguro de si.
Para mim basta saber que a atitude de tal gente, afogada na sua mórbida
existência, não passa de uma forma de hipertrofia da razão.
Tenham um muito bom
dia!
(Crónica na Rádio F - dia 31 de Março de 2014)