A desobediência
civil não é o nosso problema. O nosso problema é que pessoas por todo o mundo
têm obedecido às ordens de líderes e milhões têm morrido por causa dessa
obediência. O nosso problema é que as pessoas são obedientes por todo o mundo
face à pobreza, fome, estupidez, guerra e crueldade. O nosso problema é que as
pessoas são obedientes enquanto as cadeias se enchem de pequenos ladrões e os
grandes ladrões governam o país. É esse o nosso problema.
Estas palavras
foram escritas por Howard Zinn, um historiador, cientista político, ativista e
dramaturgo americano, falecido em 2010 e autor de obras como “A People`s
History of the United States” e “Disobedience and Democracy: Nine Falacies on
Law and Order”. Vieram-me à memória, vá-se lá saber porquê, após a leitura de
uma notícia publicada numa das últimas edições deste mesmo semanário, com um
título curioso e algo ultrajante: “Fernando Girão novamente condenado”.
A história
conta-se em poucas palavras. O ex-presidente da ULS da Guarda e candidato
derrotado do PS à câmara de Foz Côa, Fernando Girão, que já havia sido
condenado há uns meses por um crime de violação de correspondência no caso da
já célebre novela do papel timbrado usado num abaixo-assinado sobre as
maternidades, foi agora condenado por mais quatro crimes, desta feita de
difamação agravada.
Como não é
frequente obter-se a condenação de pessoas associadas ao poder, para mais com
ligações a mais de um partido no qual um dia militaram, enchi-me de curiosidade
e saltei para dentro deste assunto com o mesmo entusiasmo com que um
adolescente da minha geração se atirava a uma das populares aventuras dos
Cinco.
A sentença
condenatória, que é pública, é aquilo que em linguagem popular se poderia
chamar de um genuíno “arraial de pancadaria jurídica”. Estupefacto, percebi
finalmente a verdadeira história por detrás das muitas notícias que não
compreendia bem, desde as multas de 33 mil euros aplicadas aos médicos Matos
Godinho e Henrique Fernandes pelo uso de duas folhas de papel timbrado do
hospital, até ao despedimento deste último profissional, autenticamente
fabricado a martelo e com fracasso garantido.
Está lá tudo.
Telefonemas do governo, ambiente de terror, perseguições, manipulações, etc.
Para resumir, encontramos nesta sentença o pior daquilo que a natureza humana é
capaz. Garanto-vos que Fernando Girão e os que com ele um dia privaram ou que
em algum momento acreditaram no que quer que ele lhes tivesse dito acerca deste
filme não ficam nada bem na fotografia.
Pelo meio
ficámos a saber que Fernando Girão só não levou uma pena maior por se encontrar
em grandes dificuldades financeiras e por ter já mais do que uma penhora no seu
ordenado. É triste, mesmo muito triste. Até para quem não tenha pena dele.
Mas o que mais
me espantou foi perceber que aqueles dois médicos não são deste mundo. Para não
pensarem que exagero, convido-vos a lerem integralmente a sentença e a julgarem
por vós. Apenas vos digo que são aquele tipo de pessoas, infelizmente muito
raras, que nos permitem olhar para a velha dúvida de Aristóteles “haverá
flagelo mais terrível do que a injustiça de armas na mão?” com outros olhos e
com muita esperança.
A tragédia de
tudo isto é que a ULS da Guarda pode queixar-se de ter sido a única instituição
do género a ser alguma vez governada por condenados. O que já vai sendo um
hábito. Não esqueçamos que o atual presidente conseguiu ser condenado até antes
de para cá vir, podendo por isso juntar-se a Fernando Girão na galeria dos
notáveis, apesar de nenhum deles ter governado o país. Quanto a Ana Manso, a
ser investigada no celebérrimo caso do “marido auditor interno”, ainda estamos
para ver. Ai, ai, ai…
Moral da
história: ser-se presidente todo-poderoso da ULS e ter-se falta de muita coisa,
pode até ser, mas não se recomenda. Mesmo nada.
(Crónica no jornal "O Interior" - 9 de Abril de 2014)