sábado, abril 19, 2014

Ponto de vista

Durão Barroso, armado em candidato às próximas presidenciais, começou finalmente a dar nas vistas, dando entrevistas. Numa das últimas fez aquilo que por vezes acontece a quem corre quando devia era estar sentado: espalhou-se ao comprido.
Depois de uma enfiada de elogios ao governo e a Cavaco Silva, que me trouxe à memória aquela patética imagem das sociedades amigáveis de palmadinhas nas costas, Durão Barroso resolveu falar na educação em Portugal. Arrebatado consigo mesmo, elogiou com saudade a “cultura de excelência” nas escolas de antes do 25 de Abril. Assim mesmo.
Vamos então recordar do que falou Durão Barroso, o português que um dia, com a educação que se sabe, fugiu para a Europa a sete pés depois de ter feito por cá tudo aquilo que muitos ainda recordam.
O tal ensino que Barroso considera de excelência ia apenas até à terceira classe. Só mais tarde, por imposição da OCDE, a escolaridade passou para 4.ª classe, mas ainda assim sem carácter obrigatório. Para o tal ensino de excelência bastava saber de cor e salteado as linhas de caminho-de-ferro de Angola e as culturas agrícolas praticadas no Brasil, que por sinal era um país independente desde 1822. E para quem não quisesse aprender, estava reservada a velhinha reguada na palma da mão ou a saudosa cana-da-índia nos nós dos dedos.
O corporativismo, religião oficial do regime, estendia-se à educação e ao sistema de ensino. Os filhos dos doutores seriam doutores, os dos pedreiros seriam pedreiros, e por aí fora. Essa política só mudou um pouco para o fim, quando, contra a vontade de Salazar, foram criadas as escolas industriais e comerciais para os filhos da ralé, por os Alfredos da Silva e os Mellos terem descoberto que nas suas indústrias eram precisos técnicos com mais do que a 4.ª classe e que soubessem mais do que simplesmente  assinar o seu nome ou fazer trocos de tostões nas mercearias e tabernas do Portugal profundo.
A separação escolar entre os sexos era a regra. Rapazes para um lado, raparigas para o outro. Já agora, no caso delas, com cursos de lavores e de cozinha, que assim se defendiam as virtudes, fosse qual fosse o significado de tal coisa. Resultado: um analfabetismo que durante muitos anos nos alcandorou ao pódio daquilo que pior havia por essa Europa fora.
A única excelência de que a esse tempo me recordo consistia no substantivo feminino que pretendia atribuir primazias: sua “excelência” o senhor presidente do Concelho, ou sua “eminência” o senhor cardeal, ou coisas do género.
Mas mais do que as palavras, julguemos os actos. Durão Barroso é daqueles que, no dia a seguir ao 25 de Abril, andou a espalhar a revolução maoísta pela universidade, a agredir adversários políticos, a praticar a caça ao bufo e a sanear os mesmíssimos professores que até esse dia praticavam a “cultura de excelência” que agora elogia. Por isso não admira que Barroso se identifique com os acéfalos que confundem educação e ensino.
Claro que a escola de hoje não é bem aquilo que um dia almejámos. Do afastamento de qualquer cultura democrática, passando pelo encerramento de milhares de escolas e pelo financiamento simultâneo de escolas privadas desnecessárias, até ao desfasamento de quase todas elas em relação ao mercado de trabalho, muita coisa vai mal. Sadicamente, sobretudo por culpa de muitos “Durões” que por aí andam.

Alguém disse que quem não tem vergonha não tem consciência. Eu penso exactamente o contrário. Durão Barroso, não tendo nada de uma, tem muito da outra. Tem consciência de que este povo, capaz do melhor e do pior, pode mesmo vir um dia a elegê-lo presidente da República. E se isso acontecer, a profecia cumpre-se. Não foi Salazar, o pai da tal “cultura de excelência”, quem afirmou um dia que cada povo tem os políticos que merece? Ora aí têm! 
Com ou sem excelência, muito bom dia a todos…

(Crónica na rádio F - dia 14 de Abril de 2014)