Por que a memória deve AJUDAR-NOS a lembrar o que era um país triste, pobre e miserável como o Portugal dos anos 60.
Por que GOSTEI DE LER aqui vos deixo uma crónica que, para os que viveram aqueles tempos vão-se recordar da miséria de um país, para os outros, os mais novos que aprendam o que era a pobreza, a miséria a arrogância de uns quantos que nos pisavam e atiravam para a emigração, guerra e se resistisses a tortura e a cadeia.
Pois é....isto não se aprende na escola.
Eles sabem bem a razão pela qual não vos querem a ouvir as misérias de um povo.
Aqui fica o texto.
Obrigado Isabel do Carmo!!!
«O primeiro-ministro anunciou que íamos
empobrecer, com aquele desígnio de falar "verdade", que consiste na banalização
do mal, para que nos resignemos mais suavemente. Ao lado, uma espécie de
contabilista a nível nacional diz-nos, como é hábito nos contabilistas, que as
contas são difíceis de perceber, mas que os números são crus. Os agiotas batem à
porta e eles afinal até são amigos dos agiotas. Que não tivéssemos caído na
asneira de empenhar os brincos, os anéis e as pulseiras para comprar a máquina
de lavar alemã. E agora as jóias não valem nada. Mas o vendedor prometeu-nos
que... Não interessa.
Vamos empobrecer. Já vivi num país assim.
Um país onde os "remediados" só compravam fruta para as crianças e os pomares
estavam rodeados de muros encimados por vidros de garrafa partidos, onde as
crianças mais pobres se espetavam, se tentassem ir às árvores. Um país onde se
ia ao talho comprar um bife que se pedia "mais tenrinho" para os mais pequenos,
onde convinha que o peixe não cheirasse "a fénico". Não, não era a "alimentação
mediterrânica", nos meios industriais e no interior isolado, era a
sobrevivência.
Na terra onde nasci, os operários
corticeiros, quando adoeciam ou deixavam de trabalhar vinham para a rua pedir
esmola (como é que vão fazer agora os desempregados de "longa" duração, ou seja,
ao fim de um ano e meio?). Nessa mesma terra deambulavam também pela rua os
operários e operárias que o sempre branqueado Alfredo da Silva e seus
descendentes punham na rua nos "balões" ("Olha, hoje houve um ' balão' na Cuf,
coitados!"). Nesse país, os pobres espreitavam pelos portões da quinta dos
Patiño e de outros, para ver "como é que elas iam vestidas".
Nesse país morriam muitos recém-nascidos e
muitas mães durante o parto e após o parto. Mas havia a "obra das Mães" e
fazia-se anualmente "o berço" nos liceus femininos onde se colocavam camisinhas,
casaquinhos e demais enxoval, com laçarotes, tules e rendas e o mais premiado e
os outros eram entregues a famílias pobres bem-comportadas (o que incluía, é
óbvio, casamento pela Igreja).
Na terra onde nasci e vivi, o hospital
estava entregue à Misericórdia. Nesse, como em todos os das Misericórdias, o
provedor decidia em absoluto os desígnios do hospital. Era um senhor rural e
arcaico, vestido de samarra, evidentemente não médico, que escolhia no catálogo
os aparelhos de fisioterapia, contratava as religiosas e os médicos, atendia os
pedidos dos administrativos ("Ó senhor provedor, preciso de comprar sapatos para
o meu filho"). As pessoas iam à "Caixa", que dependia do regime de trabalho
(ainda hoje quase 40 anos depois muitos pensam que é assim), iam aos hospitais e
pagavam de acordo com o escalão. E tudo dependia da Assistência. O nome diz
tudo. Andavam desdentadas, os abcessos dentários transformavam-se em grandes
massas destinadas a operação e a serem focos de septicemia, as listas de
cirurgia eram arbitrárias. As enfermarias dos hospitais estavam cheias de
doentes com cirroses provocadas por muito vinho e pouca proteína. E
generalizadamente o vinho era barato e uma "boa zurrapa".
E todos por todo o lado pediam "um
jeitinho", "um empenhozinho", "um padrinho", "depois dou-lhe qualquer coisinha",
"olhe que no Natal não me esqueço de si" e procuravam "conhecer lá
alguém".
Na província, alguns, poucos, tinham acesso
às primeiras letras (e últimas) através de regentes escolares, que elas próprias
só tinham a quarta classe. Também na província não havia livrarias (abençoadas
bibliotecas itinerantes da Gulbenkian), nem teatro, nem cinema.
Aos meninos e meninas dos poucos liceus
(aquilo é que eram elites!) era recomendado não se darem com os das escolas
técnicas. E a uma rapariga do liceu caía muito mal namorar alguém dessa outra
casta. Para tratar uma mulher havia um léxico hierárquico: você, ó; tiazinha;
senhora (Maria); dona; senhora dona e... supremo desígnio -
Madame.
Os funcionários públicos eram tratados
depreciativamente por "mangas-de-alpaca" porque usavam duas meias mangas com
elásticos no punho e no cotovelo a proteger as mangas do casaco.
Eu vivi nesse país e não gostei. E com tudo
isto, só falei de pobreza, não falei de ditadura. É que uma casa bem com a
outra. A pobreza generalizada e prolongada necessita de ditadura. Seja em
África, seja na América Latina dos anos 60 e 70 do século XX, seja na China,
seja na Birmânia, seja em Portugal. - Isabel do Carmo (Público, 28 de Novembro
de 2011)